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A HISTORIA DO CRISTIANISMO - Pe EDUARDO HOORNAERT
A HISTORIA DO CRISTIANISMO - Pe EDUARDO HOORNAERT

EDUARDO HOORNAERT


O Autor: Belga, padre casado, mora há vários anos no Brasil. Lecionou História da Igreja nos Seminários de João Pessoa, Fortaleza e no SERENE II do Recife. Professor do extinto ITER ( Instituto de Teologia do Recife) durante os anos em que morou em Recife. Fundador do CEHILA  ( Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina ) . Fundador e coordenador do CEHILA - Popular. Renomado acessor das CEB's. Autor de vários artigos e livros sobre História do Cristianismo Antigo, História da Igreja e História da Igreja na América Latina. Dedica-se atualmente à coordenação do Projeto : História do Cristianismo no 3º Mundo; por onde publicou em 1995 o livro "O Movimento de Jesus". Pesquisador no Mestrado de História da Universidade Federal da Bahia.

Eduardo Hoornaert, de maneira muito gentil e solícita,atendeu ao pedido do Igreja Nova, e nos envia, regularmente,  artigos, sobre sua mais recente pesquisa, A Formação do Cristianismo; os quais passaremos a publicar. Nosso muito obrigado ao autor.


"Jesus reagiu com grande coragem física e moral contra a rejeição e perseguição da qual foi vítima desde o início da sua vida pública. Ele denunciou praticamente todos os dirigentes religiosos da sociedade palestinense. Não hesitou em desmascarar os abusos praticados no Templo por uma comercialização da religião que transformava a casa de oração num covil de ladrões e nem o rei Herodes escapou de sua crítica aberta e forte: ele o chamou de raposa !"   EDUARDO HOORNERT em O Movimento de Jesus .


 

A HISTORIA DO CRISTIANISMO


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO I O CRISTIANISMO NUMA PERSPECTIVA DE TERCEIRO MUNDO -

MARÇO - 1996


Estou grato à redação do "Igreja Nova" por me dar a oportunidade de conversar com vocês de forma espontânea e solta acerca de uma pesquisa que me ocupa os dias e as horas nestes últimos dois anos. Efetivamente, com alguns colegas, (uns dez no total), nos metemos no projeto de escrever uma história do cristianismo como um todo, de Jesus aos nossos dias, na perspectiva do Terceiro Mundo, ou seja da América Latina, do Caribe, da Ásia, da África. Pois quase sempre essa história é contada através de estudos feitos no Primeiro Mundo. A quase totalidade dos especialistas em história do cristianismo vivem na Europa ou na América do Norte. E eles produzem coisas muito boas: basta lembrar o livro "O Jesus histórico"de Crossan (Imago, São Paulo, 1994).

Mesmo assim esses estudos têm a marca registrada do Primeiro Mundo, onde a pobreza é (ou parece ser) menos premente e os problemas menos urgentes. Por isso quisemos fazer ouvir uma outra voz, por fraca e desafinada que seja. Há intuições próprias, enfoques originais, temas por demais esquecidos. Por exemplo a tão discutida questão dos pobres. Enfim, caro(a) leitor(a), "você decide"se vale a pena comunicar aqui, em textos que lhe tomarão uns cinco minutos de leitura, algumas descobertas que estou fazendo ao longo desses anos de leituras e pesquisas. Espero que gostem e agradeço de antemão a atenção (e eventuais comentários).

A primeira clareza que se me fez durante minhas pesquisas, eu diria de forma insistente, é que o cristianismo é apenas uma das possibilidades de se tentar concretizar o sonho de Jesus, ao lado de outras que não se concretizaram ou que foram esmagadas . Em outras palavras: o cristianismo não pode pretender ser uma simples decorrência linear do movimento de Jesus.

Nele há um dinamismo dialético entre as intuições fundamentais de Jesus continuamente recuperadas e reatualizadas e do outro lado os inevitáveis desvios, esquecimentos, limites. Assim o cristianismo fica necessariamente circunscrito por uma história ao mesmo tempo universal e particular: universal na sua continuada procura de fidelidade à inspiração original, particular porque na realidade só se adaptou em profundidade a uma cultura: a do mundo mediterrâneo. Aí houve um verdadeiro esforço de "inculturação". A nenhuma outra cultura o cristianismo se adaptou na mesma medida e com o mesmo empenho.

Você já entendeu o que quero dizer: é preciso insistir no caráter fundamentalmente mediterrâneo -e portanto regional e limitado- do próprio cristianismo. Isso nos parece importante quando se pretende estudar a nossa tradição cristã na perspectiva do Terceiro Mundo. Eis o primeiro papo que quis "bater"com vocês.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO II

ABRIL - 1996


Publicamos nesta edição, o segundo, dos oito artigos enviados pelo Prfº Eduardo Hoornaert, fundador do CEHILA (Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina) e autor de vários artigos e livros sobre a História do Cristianismo, especialmente para o nosso jornal.

O primordial seguimento de Jesus se estende do período imediatamente após a morte de Jesus, por volta de 40, até a destruição do templo de Jerusalém em 70. Historicamente aqui o cristianismo como tal ainda não existe. Trata-se de um período em que os seguidores de Jesus ainda seguem a Torá ou seja a religião judaica, na Palestina e naquelas partes da Síria ou mesmo do Mediterrâneo Ocidental já atingidas pela missão através da diáspora judaica. Estamos ainda no mundo da tradição judaica.

A questão é: a que realidade concreta correspondem os documentos que possuímos sobre esse período ? O documento mais importante é o assim chamado "Evangelho"Q ( a letra vem da palavra alemã "quelle": fonte), mais tarde - depois do ano 70 - inserido nos evangelhos de Mateus e Lucas.

Esse primeiríssimo evangelho foi sem dúvida redigido por causa do cuidado que os primeiros seguidores de Jesus tiveram em preservar a memória original do movimento da forma mais perfeita possível, a serviço dos que pretendiam seguir no movimento.

A leitura desse documento, hoje acessível inclusive em português, mostra que o movimento de Jesus era um movimento camponês, um dos diversos movimentos camponeses que surgiram na Palestina no primeiro século. Quem nos informa é o autor americano Horsley, no seu livro "Bandidos, Profetas e Messias", recentemente editado pela Editora Paulus de São Paulo (1995).

O movimento vem trazer uma esperança muito concreta para o mundo camponês da Galiléia, algo diretamente ligado à vida cotidiana: mesa farta, saúde,bem-estar para as famílias camponesas. O cristianismo ulterior abandonou o vínculo direto com a classe camponesa, como abandonou também essa expectativa concreta de solução dos problemas da humanidade pobre aqui na terra (não no céu). É o que os especialistas chamam de "escatologia terrestre".

Foi com razão que Moltmann, no livro "O Caminho de Jesus Cristo", recentemente publicado pela editora Vozes, se queixou de que, ulteriormente, "a teologia cristã negligenciou a escatologia"(p.21), quer dizer essa escatologia terrestre e concreta dos camponeses que elaboraram o primeiro projeto com Jesus.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO III

UM EVANGELHO Q ?

MAIO - 1996


Na nossa conversa anterior dissemos que no período entre 40 e 70 já existiram diversos “evangelhos”, principalmente o Evangelho Q, que mais tarde foi incorporado aos evangelhos sinópticos. Seriam evangelhos produzidos pela primeira geração dos seguidores de Jesus.

Como entender tudo isso? Vejamos bem: hoje as pesquisas acerca das origens do cristianismo já pode afirmar com certeza que a redação dos primeiros textos acerca do movimento de Jesus situa-se no período entre os anos 40 ( alguns dizem: 30 ) e 70 ( alguns dizem: 60 ) d.C., portanto algumas décadas antes dos evangelhos canônicos.

Para quem não é versado nos estudos neo-testamentários pode parecer estranho que entre os primeiros seguidores de Jesus tenham circulado “evangelhos” anteriores aos evangelhos conhecidos de Mateus, Marcos, Lucas e João. Por isso pensamos que uma apresentação sumária do que a ciência encontrou recentemente a respeito não será inútil.

Quanto ao Evangelho Q, já se disse no artigo anterior que a letra Q vem de “Quelle”, em alemão: fonte. É um texto composto na década de 50, provavelmente em Tiberíades da Galiléia, posteriormente perdido e recentemente recomposto pelos cientistas do Novo Testamento. Foi inserido nos evangelhos de Mateus e Lucas, como já disse.

A extração desse primitivo evangelho dos textos conhecidos de Lucas e Mateus é sem dúvida uma das maiores façanhas da exegese deste século. A pesquisa em torno dele ganhou força nos últimos anos, embora ainda não se tenha chegado a conclusões definitivas. Alguns especialistas escreveram sobre Jesus sem incorporar esses novos achados, outros já os usam.

De nossa parte opinamos que tudo o que se escreve hoje- e não é pouco -, inclusive a presente nota, fica no patamar das hipóteses enquanto não se concluam esses estudos acerca das tradições pré-sinóticas. Mas é bom ir adaptando-se à inclusão dessas fontes nos estudos. Seja como for, pensamos que o caráter camponês do Evangelho Q se evidencia por numerosos indícios. Essa é aliás a tese que queremos defender.

Para bem compreender tudo isso é bom lembrar-se que, até a segunda parte do século II, prevaleceu nas comunidades a tradição oral. Os primeiros seguidores de Jesus não eram letrados e só recorriam a breves textos lapidares, como o Evangelho Q. Esses textos permitem um acesso melhor aos fatos, enquanto os evangelhos sinópticos são obras mais elaboradas, mais arrumadas, redigidas sob maior controle por parte das autoridades.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO IV

UMA SURPRESA

JUNHO/JULHO - 1996


O cristão de hoje, ao ler a sucessão de breves versículos do Evangelho Q, fica surpreso. Pensa encontrar informações sobre Jesus, seu nascimento, sua pregação, sua paixão e ressurreição...e nada. Os textos não insistem de maneira nenhuma na pessoa de Jesus, não mostram interesse na sua biografia, não relatam nem milagres nem curas.

Neles, Jesus apenas aparece como quem fala, preocupado com a formação dos participantes do projeto. Já podemos pois tirar uma conclusão importante: o centro das preocupações da primeira geração era o projeto, não a figura de Jesus. Bem nos inícios, a atenção estava voltada para o projeto do Reino, e não tanto para a imitação de Cristo.

Aliás nossa observação - de caráter histórico - vem ao encontro do que o teólogo Jon Sobrino vem afirmando em seu livro “Jesus na América Latina”: “A realidade última, para Jesus, não é sua própria pessoa, nem Deus, nem a igreja, nem o reino dos céus ( o além ), mas sim o reino de Deus”(Loyola, São Paulo, 1985, 122-125).

No nosso entender aí está a razão porque será sempre difícil saber como foi mesmo a história de Jesus, não por falta de documentos, mas porque os documentos correspondem a outra preocupação: a de formar com urgência um projeto de “Reino de Deus” para os camponeses da Galiléia, sofredores e injustiçados.

Para falar em termos mais técnicos: constatamos uma predominância do tema do Reino sobre o tema da Pessoa de Jesus na primeira tradição. Desde o famosos livro de Renan: “Jesus”(1863), recentemente reeditado, e passando por Schweitzer (1906) e Klausner (1927), a pesquisa das origens empreendida no Primeiro Mundo tem manifestado uma maior concentração no estudo da figura de Jesus, seja no “Jesus histórico”, seja - mais recentemente - no “Jesus judaico”, do que no estudo do movimento social que se formou em torno dele.

Estudos recentes como o de Crossan (1994) , Meier (primeira parte:1993) , Vermes (1995), Charlesworth (1992), todos publicados pela Editora Imago do Rio de Janeiro, ou ainda o livro de Duquesne, publicado pela Geração Editorial de São Paulo em 1995, focalizam predominantemente a Jesus e deixam o Reino um pouco na sombra. Isso deixa as portas abertas à heroicização.

Aqui no Terceiro Mundo nos sentimos mais identificados com trabalhos como o de Horsley, que já mencionamos num artigo anterior, que demonstra o caráter fundamentalmente camponês do movimento de Jesus. O acento cai sobre o movimento, não sobre a pessoa de seu animador.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO V

UM MOVIMENTO CAMPONÊS

AGOSTO - 1996


Nas conversas anteriores dissemos que o movimento de Jesus foi um movimento camponês. Essa é uma observação da maior importância.

Se for verdade que a gente camponesa está na origem do movimento e indiretamente da verdade cristã tal qual a procuramos entender ainda hoje, então temos que ter o maior cuidado com as possíveis distorções provenientes dos intelectuais que trabalharam em cima de temas fundantes, provenientes do mundo camponês judeu.

Será que os intelectuais sempre compreenderam o que os camponeses quiseram dizer e fazer? Esses camponeses em questão enchiam as sinagogas, mais tarde as casas comunitárias, ainda mais tarde as basílicas e as igrejas, num movimento ininterrupto que durou séculos e afinal de contas dura até hoje.

Durante tantos séculos, os camponeses constituíram o público predominante das religiões emanadas do movimento de Jesus (ortodoxia, catolicismo, protestantismos). Eles nos acompanham já por 6 mil a 7 mil anos e constituem “mais da metade das pessoas que viveram desde o início dos tempos” ( Horsley - que já mencionamos nas notas anteriores - 1995, 14 ).

Mas só a partir dos anos ‘50 e ‘60 as ciências sociais começam a se interessar por eles: durante séculos e séculos os camponeses nasceram, viveram e morreram sem praticamente nenhum registro escrito de sua passagem pela terra. Os documentos cristãos não são uma exceção: praticamente não se fala de camponeses.

Contudo na época de Jesus constituíam mais de 90% da população da Palestina ( Horsley, 1995, 8 ), uma imensa maioria que ficou largamente silenciosa mesmo no nível dos textos evangélicos, onde já não aparecem mais em primeiro plano. Aí se fala mais dos fariseus e dos “doutores da lei”, gente da elite, do que dos camponeses.

Precisa-se restituir aos camponeses a iniciativa do movimento de Jesus. Pois Jesus era originário da aldeia camponesa de Nazaré e foi a partir da emoção e da indignação que ele manifestava para com as condições de vida camponesa que ele foi reconhecido pelos camponeses como alguém capaz de representá-los, defendê-los e orientá-los.

Só dentro do mundo referencial camponês galileu se entende a história de Jesus. Não desprezemos a capacidade teológica desses camponeses galileus: eles eram herdeiros de uma longa e bonita tradição teológica cultivada em Israel desde muitos séculos. Teólogos sofridos, de mãos calejadas, mas teólogos. Camponeses-teólogos, ciosos em descobrir sempre o sentido mais profundo das coisas. Sua teologia era ao mesmo tempo mística e escatológica, esperava um tempo bom após tanto sofrimento.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO VI

OS CAMPONESES RECONHECEM JESUS

SETEMBRO - 1996


É a partir da maneira de pensar dos camponeses galileus dos anos 20-40 que conseguimos compreender a figura de Jesus. Ele é logo identificado por eles, sem maiores dificuldades, como profeta e messias. Como entender isso ?

Se Jesus foi chamado a assumir a liderança de um movimento camponês, não se deve pensar que esse tenha sido o único existente na Palestina daquele tempo. Horsley teve a idéia de se perguntar quais eram os nomes que os camponeses deram na época a líderes de movimentos de libertação.

Ele chegou a três termos típicos: Bandido, Messias, Profeta. Horsley chegou assim a uma tipologia dos movimentos camponeses e chegou a registrar os seguintes nomes: Bandidos famosos foram Ezequias ( cerca de 47-38 a. C. ), os salteadores das cavernas na década de 30 d.C., Eleazar ben Dinai (30-50 d.C.), Tomolau (início da década de 40 d.C.), Jesus filho de Safias (década de 60 d.C.) e João de Gíscala (66 d.C.).

Entre os Messias contamos Judas, filho de Ezequias (aprox. 4 a.C.), Simão (aprox. 4 a.C.), Antroges (aprox. 4-20 d.C.), Manaém, filho de Judas o Galileu (aprox. 66 d.C.) , Simão bar Giora (68-70 d.C.) e Bar Kokeba (132-135 d.C.). Profetas conhecidos eram João Batista ( do final da década de 20 d.C.), o Samaritano (aprox. 26-36 d.C.), Teudas (aprox. 45 d.C.), o Egípcio (aprox. 56 d.C), e Jesus filho de Ananias (62-69 d.C.).          ( Horsley, 1995, 222-223 ).

Todos esses movimentos procuravam reverter uma situação de extrema injustiça, penúria e marginalização. Normalmente eram dirigidos contra a elite nacional templária, a casa de Herodes ou os representantes do império romano. Jesus nunca foi reconhecido como bandido ( embora tenha sido crucificado entre dois “salteadores”, ou seja: bandidos ), mas era relativamente fácil para os camponeses galileus reconhecer nele um messias ou um profeta.

O referencial se encontrava na cultura camponesa da época, transmitida nas sinagogas. Aí as figuras do messias e do profeta eram conhecidas e esperava-se o surgimento de um messias -como David, que conduzira a resistência de seu povo contra a dominação- ou de um profeta tipo Elias ou Eliseu.

Figuras como Amós, Miqueias ou Jeremias eram também muito populares. Claroa que não era qualquer um que conseguisse interpretar a ação de Jesus segundo esses modelos bíblicos, mas em geral não se pode menosprezar a formação cultural do camponês galileu.

Ele vivia num clima de expectativa apocalíptica, aguardava para dentro de breve o dia em que Deus ia pronunciar seu veredito sobre o mundo, e os ëxércitos celestes” iam descer para socorrer os justos na luta final.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO VII JESUS, MESSIAS E PROFETA.

OUTUBRO/NOVEMBRO - 1996


Os camponeses reconheceram logo em Jesus um “Messias”. A expressào “Reino de Deus”, usada por ele, era de fácil assimilação, pois correspondia a uma longa tradição de espera por uma realeza popular.

Se os romanos condenaram Jesus sob a acusação de ser “rei dos judeus”(Mc 15, 26), é que o povo tinha usado o termo para indicar Jesus. Aliás, Flávio Josefo, o historiador judáico que permanece nossa maior fonte de conhecimento acerca dessa história toda, atesta que o povo judeu costumava aclamar como reis seus líderes.

Na realidade, “esses reis populares aclamados pelo povo eram líderes armados”( Horsley, 1995, 122 ). Mas Jesus fugia do figurino. Era um Messias “diferente”. Não andava armado. Isso não significa que ele tenha sido um messias espiritualizado do tipo que os fariseus e os essênios se imaginavam.

Era um Messias camponês de verdade (ou, se queiram, um Cristo, pois “cristo” é a tradução grega do termo hebráico “mashîah” ou messias, ungido ), um rei ungido para liderar seu povo. Não se procure mais no termo “Cristo”, pelo menos ao período que nos ocupa, um significado maior do que a simples tradução de um termo muito comum entre os camponeses galileus da época. Só mais tarde, já em ambiente cristão, a expressão “Cristo”se tornou mais complexa, sobretudo com a assimilação de linhas filosóficas gregas.

Os camponeses da Galiléia igualmente não tiveram dificuldade em descobrir na pessoa de Jesus um Profeta (Mc 6, 15-16). Ele fazia o que se esperava de um profeta, inspirava com dinamismo um movimento que em última análise era de Deus. Os camponeses viram nele um novo Moisés, Josué, ou um novo líder do tempo dos Juízes, um novo Elias ou Eliseu, de qualquer modo uma grande figura que correspondia à vigorosa tradição de profetas de Israel.

Os profetas eram figuras eminentemente populares.Há pouca evidência do surgimento de profetas no meio dos fariseus ou dos essênios, que viviam longe do povo. Um dos profetas com quem jesus se aproximou foi João Batista, considerado o predecessor ou até o mentor dele, pela proximidade das mensagens de ambos. De nossa parte pensamos que a apresentação de Jesus segundo a tipologia popular e camponesa de Messias e Profeta significa um passo à frente no esforço de se apresentar a figura de Jesus aos povos do Terceiro Mundo.

Pois para interpretar a Jesus em termos de hoje vigora um pouco por toda a parte entre os estudiosos do Primeiro Mundo a famosa tipologia de Max Weber em cima da distinção burocrática, tradicional e carismática. Segundo Weber, Jesus teria sido um líder carismático.

Comparado com a tipologia de Horsley - mais histórica, mais ligada à vida concreta dos camponeses da Galiléia -, o esquema weberiano se revela muito genérico, pouco enraizado no mundo concreto, capaz de criar uma imagem elitista de Jesus.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO VIII JESUS E OS ZELOTES.

DEZEMBRO 1996


Uma questão que tem prejudicado muito a discussão acerca do caráter “terceiromundista” da figura de Jesus é a pretensa relação entre o movimento de Jesus e os dos assim chamados zelotes. Nos anos ‘60-’80 criou-se, nos estudos acerca das origens do cristianismo, uma forte polarização em torno da questão da violência e da não-violência.

Como na época os movimentos marxistas efetivamente estavam com o poder em diversos estados (Rússia, China, Cuba ), e o tinham conquistado através da luta armada, houve assimilação entre movimentos populares e violência. Daí a ânsia em se apresentar um Jesus não-violento em oposição com movimentos camponeses “violentos, e especificamente em provocar um contraste entre Jesus e os assim chamados zelotes que teriam sido violentos típicos da época.

Ora, a questão dos zelotes é mal colocada desta forma, como já ressaltamos no nosso estudo “O Movimento de Jesus”(Vozes, 1994), e por um motivo muito simples: “Os zelotes, tais quais comumente aparecem nos estudos recentes, são uma elaboração acadêmica recente...Simplesmente não há provas de um movimento organizado que tivesse defendido a revolta armada contra Roma entre 6 e 66 d.C.”(Horsley, 1995, 9 e 10).

Para falar claramente: Jesus nunca lidou com zelotes pelo simples fato que o movimento não existia na época de sua vida ou pelo menos não aparece no nível dos textos. tudo indica que só emergiu no inverno de 67-68 d.C., ou seja no início da guerra judaica contra Roma que terminou tão dramaticamente com a destruição do Templo de Jerusalém pelos exércitos do Imperador Tito (ibidem, 18). E com isso podemos considerar essa discussão por encerrada e passar adiante, com a permissão do benevolente leitor.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO IX O COMBATE À FOME

JANEIRO/FEVEREIRO - 1997


O objetivo de Jesus estava muito distante do trabalho dos zelotes ou da filosofia dos cínicos. Ele quis na realidade encaminhar problemas muito concretos do povo camponês da Galiléia.

A primeira questão, a mais urgente, foi a de saciar a fome do povo camponês da Galiléia. ( Rocha, Zildo e Soares, Sebastião, O Escândalo da Fome e a Praxis da Vida Cristã, em: Estudos Bíblicos 46, Vozes, Petrópolis, 1995, 19-24 ). Não a fome casual de quem está fora de casa e não tem onde arranjar comida, mas a fome endêmica dos que passam fome a vida toda. A tarefa é urgente.

A fome não conhece espera. A religião dos famintos tem como sinal primeiro e principal a mesa farta, o pão, o vinho, a “eucaristia” (agradecimento) por causa do pão e do vinho. A fome do povo constitui a primeira urgência, a mais imediata, que leva Jesus a agir.

Ele sai do anonimato e se pronuncia diante da sociedade. Inconformado com a fome que vê por toda a parte, ele quer, num primeiro impulso, remediar ao que lhe eve ter pareceido uma situação insustentável. Jesus é o primeiro a preocupar-se em dar de comer ao povo, a comida simples de todos os dias: pão e peixe.

Evocações de mesa farta e de banquete se repetem ao longo das narrativas evangélicas como o cúmulo da felicidade. A felicidade suprema consiste em “nunca mais ter fome, nunca mais ter sede” (Ap. 7,16). Morrer de fome é a última desgraça ( Ap. 6,8 ).

A expressão “pão e peixe” volta o tempo todo.

É que a atenção do pobre sempre está voltada para a mesa e o que nela eventualmente se encontra: pão e peixe. Quem passa fome só vê diante de si a miragem da comida farta. Foi Gandhi quem disse: “Para o faminto Deus tem a figura de pão”. Eis o grande sonho dos pobres de todos os tempos e quadrantes deste mundo.

Foi o sonho na mente dos primeiros ouvintes de Jesus na Galiléia. Este sabe por experiência que o povo passa fome, pois frequenta os ambientes de trabalho (Mt 13,55). Daí a orientação dada aos apóstolos: a fraternidade não pode limitar-se a palavras generosas, tem que ter dimensões concretas, inclusive materiais e financeiras (Mc 10, 21; Mt 19, 16-30). O que enraiza as narrativas evangélicas no chão da realidade vivida é essa íntima relação com o mundo dos famintos que aparece a cada momento. Jesus lida diretamente com famintos e dirige sua palavra e sua ação em benefício destes.

Escreve José Comblin: “O evangelho é uma palavra dirigida aos famintos ”( Comblin, José, A Fome e a Bíblia, em: Estudos Bíblicos 46, Vozes, Petrópolis, 1995, 30). O evangelho se relaciona com a fome, é em primeiro lugar uma proposta no sentido de solucionar a fome dos camponeses sem terra da Galiléia.


EXCLUSIVO: FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO X A EUCARISTIA

MARÇO - 1997


A Eucaristia é a exuberante ação de graças na hora em que aparece o pão na mesa. Possuímos um relato revelador: a multiplicação dos pães. Mas é preciso raspar o verniz dos séculos para ver aparecer a história nas cores naturais. O texto foi tão manejado que chegou até nós com uma série de exageros, acréscimos e comentários, ao ponto de tornar-se quase impossível o reconhecimento do que realmente aconteceu ( Duquesne, J., Jesus, Geração Editorial, São Paulo, 1995, 110 ).

Os comentaristas modernos explicam normalmente o milagre dizendo tratar-se de conseguir que as pessoas que tinham seguido Jesus numa região deserta pudessem alimentar-se antes do cair da noite. não sabemos mais o que foi feito concretamente na ocasião. Pessoalmente acho viável a explicação de Theissen de que Joana, mulher de Cuza, tenha mandado enviar na hora uma “feira”com pão, frutas e peixes ( Theissen, G., A Sombra do Galileu, Vozes, Petrópolis, 1989, 143).

É uma entre muitas explicações. Mas ela não explica o principal: o plano de Jesus diante de seu povo faminto, vítima da fome edêmica. Se os quatro evangelistas falam com insistência dessa multiplicação, e mostram como foi grande o entusiasmo na hora, e se eles contam como os ajudantes recolhem os restos de pão com extremo cuidado “para que nada se perca”, é que deve ter havido algo mais que uma única multiplicação de pães, num momento de necessidade passageira. Jesus deve ter pensado num plano no sentido de vencer o flagelo da fome.

Ele não era do tipo que fica com a cabeça nas nuvens a sonhar. A imagem de doze cestos “com pedaços de cinco pães de cevada”é absolutamente irresistível. As pessoas exclamam: “Esse é verdadeiramente o profeta que deve vir ao mundo” : um homem que sabe multiplicar o pão na boca do povo. Jesus é profeta pois ele nos multiplica o pão.

O que foi Ele fez? Ensinou aos seus seguidores a compartilhar com outros o pão na mesa. Tudo indica que houve, nas primeiras comunidades, uma postura radicalmente nova frente à questão da fome, uma “comunhão de bens”, uma “comensalidade” franca e aberta.

Pode parecer estranho explicar a Eucaristia de forma tão inusitada, como um grito de alegria e agradecimento na hora em que o pão aparece na mesa. mas estamos diante de textos muito antigos, que costumam não livrar com facilidade seu sentido à compreensão do leitor moderno.

Não porque sejam difíceis em si, mas porque o leitor moderno está por demais encapsulado no seu próprio mundo para poder captar a mensagem - singela e quase evidente - que emana do texto antigo. Se aqui tentamos nos aproximar dos primeiros textos através da chave “faminto-saciado”, não é por gosto gosto pela novidade, mas porque os documentos dizem efetivamente: “Felizes os famintos”, uma expressão que só tem sentido quando completado: “porque serão saciados”.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XI

JESUS NÃO INOVA POR INTEIRO

ABRIL - 1997


O fato de ter um plano para erradicar a fome do povo não é uma iniciativa inteiramente nova por parte de Jesus.

A percepção de que o Reino de Deus aparece na forma de pão para todos já se encontra na antiga tradição de Israel, que parte de um princípio participativo muito próximo da idéia de Jesus.

Todos são filhos de Israel, ricos e pobres, proprietários de terras e vagantes pelas estradas. A atuação de Jesus e dos apóstolos recupera pois uma antiga tradição, na linha dos profetas que sempre criticaram a não-observância de certos pontos da legislação social e econômica de Israel e insistiram na o rganização solidária do povo. Há pois um background judaico, diante do qual situam-se as palavras de Jesus.

A idéia subjacente é que todos somos filhos de Deus e por conseguinte irmãos e irmãs entre nós, o que implica na comunhão de bens. Nesse contexto o jantar da Páscoa, o "Seder" dos judeus, que os cristãos chamam de "ceia" ou ainda "eucaristia", é o momento em que todos esquecem o problema da fome para se deliciar com as alegrias da mesa. Até hoje, os judeus de tal sorte amam a mesa e a festa que centralizam toda a sua religião em torno da mesa: "mesa da comunhão".

Muitos trechos do Antigo Testamento ( e dos Evangelhos ) se iniciam ou terminam numa refeição. O movimento de Jesus insere-se nessa história, fundamentalmente judaica, da vitória sobre a fome. Resultado: não há mais dois [ grego-judeu; homem-mulher; escravo-livre; circunciso-incircunciso; bárbaro-cidadão ] mas um [ Cristo, tudo em todos ]. Esse tema de "dois em um" constitui um dos mais antigos testemunhos do primeiríssimo seguimento de Jesus e deve ser situado no período que vai de 30 a 60 d.C. ( Crossan, op. cit., 473 ).

Ulteriormente foi espiritualizado pelos teólogos, mas no seu sentido original significa que a definitiva superação da situação de fome no mundo depende da união das pessoas, da quebra das divisões entre as pessoas e as nações. Todos devem unir-se diante do inimigo comum: a fome. Eis uma formulação bem característica do projeto inicial de Jesus e de seus seguidores.

Ela constitui o âmago de todas as mensagens veiculadas pelo jovem movimento: seguir a Jesus significa praticar, de uma ou outra forma, a comunhão de bens, não para exercer "a virtude da probeza" mas sim para lutar concretamente contra a vergonha da fome das multidões. Foi assim que as primeiras comunidades entendiam as coisas.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XII PÃO PARA TODOS

MAIO - 1997


A reflexão do pequeno artigo anterior nos leva à questão da assim chamada "comunhão de bens"que, segundo o relato dos Atos dos Apóstolos, teria sido praticada nas primeiras comunidades ( At 4, 32 ).

O que pensar?

A escola liberal-burguesa sempre relutou em admitir o que lhe parecia uma espécie de "comunismo primitivo" entre os primeiros seguidores de Jesus.

O que nos informam os documentos ? Confessamos que não encontramos muita coisa, além dos textos genéricos e um tanto idealistas dos Atos dos Apóstolos.

Contudo, um "insight"mais realista nos é oferecido nos capítulos 11 a 15 da Didaqué ( texto sírio dos anos 120 ), que relatam como as comunidades recebiam os apóstolos itinerantes: "Todo apóstolo que venha para junto de vocês, recebam-no como ao Senhor. Mas ele não ficará senão um dia ou dois, se for necessário; se ficar três dias, é pseudoprofeta." ( 11, 4-5; veja também 12, 2-5 ).

A razão é simples: as comunidades não dispõem de recursos para manter por muitos dias pessoas que não ajudem a custear as despesas com a alimentação.

Mas com que prazer se descreve o que o missionário itinerante tem que receber quando se hospeda junto a uma comunidade: "Tomem as primícias do lagar e da eira, dos bois e das ovelhas e as dêem aos profetas, porque eles são os nossos sumos sacerdotes. Igualmente se vocês abrirem uma vasilha de vinho, tirem as primícias e as ofereçam aos profetas" (13, 1-6). Mais uma vez a imagem de uma mesa farta. Vinho bom, pão em abundância.

Eis os grandes símbolos, os paradigmas litúrgicos, a imagem popular da excelência do reino de Deus.

O texto da Didaqué mostra que os cristãos compartilham efetivamente a mesa com os recém-chegados, mas não por muito tempo, pois a pobreza não o permite.

A alegria que esse espírito de partilha espalha por todo canto é, no nosso entender, a chave para o entendimento da palavra de Jesus: "Façam isso em memória de mim".

Façam a festa, preparem as comidas, aprontem a ceia. Jesus quer ser lembrado numa festa, em torno de uma mesa onde é bom comer com os outros. Eis a "nova aliança": todos como irmãos em torno do alimento que une as pessoas.

O Talmud prescrevia que se rasgasse o pão e que se dêem pedaços do mesmo pão aos participantes. Foi o que Jesus fez na multiplicação dos pães. A aliança entre Deus e os homens se mostra no fato que há "pão para todos".

Pensamos que aí está o primeiro sentido dessas palavras, mais tarde interpretadas sacramentalmente pelos teólogos.

Vamos dar graças a Deus, porque nossa casa dispõe de pão para todos. Aqui não há mais famintos. Nossa solidariedade elimina a fome.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XIII

"NÃO HAVERÁ POBRES ENTRE VOCÊS"

JUNHO/JULHO - 1997


É bem de "solidariedade" que se deve falar, quando se quer definir o projeto de Jesus, ou ainda de "simplicidade de coração", ou seja : o coração inteiramente devotado para Deus e os irmãos. Uma solidariedade bem concreta: na comunhão do pão e do peixe, e em certos casos dos bens da vida em geral. Que alegria transparece nos textos que tratam dessa comunhão de bens entre todos ! Um sonho longamente acalentado no Antigo Testamento: "Não haverá pobres entre vocês"                    ( Deuteronômio 15,4 ) está ficando realidade ! Há, por exemplo, forte indícios de que as comunidades ajudavam a pagar os impostos, na época um peso enorme em cima dos ombros dos camponeses. Os evangelhos relatam em diversos tópicos que os camponeses da Galiléia não conseguem pagar os impostos. A documentação nos vem do Egito, na mesma época, por meio de papiros (pequenos bilhetes), - e que foram conservados graças a duas causas: a burocracia bem organizada, e as areias das planícies do rio Nilo que conservam bem o papiro- , confirma: os impostos eram também um grande problema para os camponeses coptas ( Crossan, 1994, 54 ). O problema deve ter sido geral e podemos supor que o movimento de Jesus tenha tomado uma postura diante desse problema crucial na vida camponesa. O tema merece aprofundamento.

Certos companheiros iam mais longe: os Atos dos Apóstolos relatam que Barnabé "seguiu a ordem do Senhor, vendeu seu campo e deu a soma aos apóstolos" ( At 4, 36-37 ). Os mesmos Atos atestam que assim fizeram muitos: "vendiam seus campos e suas propriedades e partilhavam o resultado entre todos segundo as necessidades de cada um"( 2, 44 ). Mesmo sabendo que os Atos dos Apóstolos não primam em termos de precisão historiográfica, podemos supor que muita gente colaborou com seus bens na constituição de um patrimônio comunitário.

Jesus liga a questão dos pobres à esperança apocalíptica. A afirmação: "Felizes os pobres...porque deles é o Reino de Deus" se destaca com vigor diante da idéia de esperança apocalíptica na tradição judaica que colocava as coisas mais ou menos assim: "Felizes os judeus porque deles é o Reino de Deus". A postura de Jesus diverge nitidamente dessa compreensão comum da tradição apocalíptica. Isso fica claro nos dois versículos subsequentes do documento Q: "Felizes os que têm fome: eles serão saciados.

"Felizes os que estão chorando: eles hão de rir".


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XIV

POBREZA E DOENÇA

AGOSTO - 1997


Uma das mais perversas conseqüências da pobreza é a doença. Não a doença que aparece como uma eventualidade remota, nos países em que a vida está praticamente garantida para a maioria das pessoas de até 30 anos de vida. Nesses países, as pessoas começam a pensar na morte na idade de 60 anos. Elas mal imaginam como é a morte no Terceiro Mundo de hoje, ou na sociedade camponesa do tempo de Jesus. Segundo estudos realizados no Terceiro Mundo, em média um terço das crianças que conseguem sobreviver ao parto morrem antes de completar os seis anos. Cerca de 60 % dessas crianças estarão mortas aos 16 anos, 75 % aos 26 e 90 % aos 46 anos. Talvez 3 % das pessoas atingem os 60 anos.

Ora, o cristianismo se desenvolveu durante séculos em sociedades onde a morte era uma companheira constante na vida, não uma realidade que começa a ser encarada seriamente aos 60 anos ou mais tarde. O comum mesmo era "morrer antes do tempo", como diz Gustavo Gutiérrez. Por isso, a prática de Jesus e dos primeiros seguidores camponeses se preocupa ativamente com a saúde do corpo, e nesse ponto também destaca-se diante dos movimentos camponeses da época. Além disso, o fato que no seguimento de Jesus se pratica concretamente a cura, o distingue igualmente das religiões espiritualizantes. E assim continua acontecendo com o cristianismo, que até hoje trata de questões de terra, de camponeses sem terra, do trabalho, da escravidão, da exploração da mulher, da escravização do negro, da marginalização do camponês, da eliminação do índio. Esses e outros temas pertencem ao centro da mensagem original, não apenas supletivos e suplentes. Como em outros aspectos, aqui também Jesus veio radicalizar e reafirmar o que já estava nos profetas do Antigo Testamento e na Torá.

Jesus sempre une as duas recomendações: anunciar o reino e curar os doentes. A cura é sinal do reino. Os seguidores são ao mesmo tempo curandeiros e profetas. Para situar corretamente essas recomendações, é preciso lembrar-se de que a expressão "cura" (therapia) é culturalmente condicionada. O que uma determinada cultura considera doentio não é necessariamente considerado tal numa outra. A pobreza social é sem dúvida uma doença, um mal a ser erradicado, algo de vergonhoso para um povo. A cura, nesse sentido, implica uma série de atividades terapêuticas não só de ordem física e psicológica, mas também política e social. Quer nos parecer que a dupla recomendação de Jesus no sentido de ao mesmo tempo curar os doentes e anunciar o reino se enquadra bem aí.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XV

A EMOÇÃO DE JESUS DIANTE DA SAÚDE

PÚBLICA NA GALILÉIA.

SETEMBRO/OUTUBRO -1997


Uma simples leitura dos três primeiros capítulos do evangelho de Marcos convence: a situação da saúde pública na Galiléia era simplesmente calamitosa. Diante da absoluta falta de amparo apareciam no meio do povo terapeutas de todo o tipo, milagreiros, exorcistas, curandeiros, médicos populares. As autoridades não gostavam da possível ascendência que um terapeuta podia adquirir, como se deduz do episódio de cura que envolveu Pedro e João no templo (At 3, 1-10), com toda a confusão que se seguiu com as autoridades do sinédrio ( At 4, 1-22). Realmente, o impacto que um pregador popular exercia sobre o povo dependia largamente de sua capacidade de curar. Isso compreende: O pobre - hoje e ontem - ainda se vira quando estiver bem de saúde. Mas quando esta vem a faltar, é o fim. Os serviços médicos organizados não estão ao seu alcance e as autoridades não se comovem com a sua dor. Por isso mesmo ele apela para Deus, já que os homens não resolvem seu caso. Em todos os quadrantes do mundo e em todas as épocas da história, a falta generalizada de saúde provoca uma enorme onda de religiosidade medicinal. A falta de saúde é de longe o maior combustível das religiões. As orações dirigidas ao Deus "com passível e misericordioso" não conhecem fronteiras confessionais: encontram-se em textos judaicos, islamitas, budistas, cristãos, shintoístas, animistas, primitivos e desenvolvidos, antigos e modernos, poéticos e vulgares. O Deus que cura é universal.

Diante dessa realidade dolorosa, Jesus se impressiona profundamente. Albert Nolan nos diz que a palavra "compaixão" é fraca demais para exprimir a profunda emoção que Jesus deve ter sentido diante da falta de saúde do povo camponês. O termo grego usado nos evangelhos, "splanchnon", fala melhor dessa comoção forte que mexe com as entranhas, de forma mais realista: "suas entranhas ficaram comovidas"; "ele ficou emocionado de compaixão"; "ele chorou" ( Nolan, A., Jesus antes do Cristianismo, Vozes). Os que tiveram contato com ele, ficaram impressionados com essa demonstração de sensibilidade por parte de Jesus pela "gente da terra" e pelo abandono em que esta vivia. Isso fica claro nos primeiros textos.

Jesus costuma tocar as pessoas doentes, mesmo o leproso da sinagoga, o que na hora despertou estranheza ( Mc 1,40; Mt 8, 1-4; Lc 5, 12-16) pois estava em confronto com as prescrições rituais e higiênicas da Torá. Esse episódio causou mais tarde muita controvérsia.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XVI

JESUS TERAPEUTA

NOVEMBRO - 1997


A ação de Jesus diante da doença do povo ficou registrada em textos do primeiríssimo estrato, redigidos entre 30 e 60 d.C: são os relatos de milagres. Desde cedo redige-se uma "coleção de milagres", posteriormente inserida nos evangelho de Marcos (2, 6 e 8) e João (2-9), uma espécie de "Atos de Jesus"  (ao lado de seus "ditos") ( Crossan, 1994, 467). O ato de curar era tão importante no primitivo seguimento de Jesus, que o texto copta do evangelho de Tomé , 14, 2, usa o verbo grego "therapeuô" (curar) para designar as ações dos discípulos. Parece que a língua copta não tinha um termo apropriado: "Quando forem a qualquer região e andarem pelo campo, quando as pessoas os receberem, comam o que lhes servirem e ‘curem’ aquelas que estiverem doentes..."

Não resta dúvida: Jesus era aos olhos da primeira geração um grande terapeuta popular. Seus milagres foram cuidadosamente registrados. Mateus por exemplo, mesmo relutando em realçar a dimensão terapêutica da ação de Jesus, relata que ele veio para "curar toda doença e todo mal-estar no povo" ( 4, 23-25). Por isso mesmo, "numerosas multidões" o seguiam, não só da Galiléia, mas também da Decápole, de Jerusalém, da Judéia e mesmo da região além do Jordão (ibidem). Foi através de histórias de milagres que a primeira boa nova se espalhou na Galiléia e depois na Judéia. As multidões começaram a seguir o grupo de terapeutas que apareceu na região. Leia Mc 3, 7-8 e o texto já mencionado de Mateus. Todos os quatro evangelhos falam dessas multidões. O evangelho de João -testemunha ocular- apresenta a imagem de um Jesus preocupado com o sentido que o povo dá aos milagres ( veja Jo 6, exemplo típico), e que "ensina", tentando explicar o sentido das curas. Daí o uso que João faz do verbo "didascein" (ensinar). Para ele, os milagres são "sinais" que indicam um sentido além da cura imediata. Isto é fundamental para João: o sentido está além, não está na simples cura instantânea.

Efetivamente, a cura é apenas um sinal. Ela implica na criação de comunidades que oferecem um ambiente sadio de segurança e acolhimento. Por isso, as primeiras comunidades dão muito valor aos que têm a capacidade de ‘curar’, dando acolhimento. No rol dos ministérios, o dom de curar fica logo atrás do carisma de apóstolos, profetas e doutores: "Vêm, a seguir, os dons dos milagres, das curas, da assistência" ( 1Cor 12, 28). O corpo de dor é acolhido num "lar", onde a cura não depende simplesmente da oração, mas sobretudo do despertar de uma consciência social e política.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XVII

JESUS E OS "SEM TERRA" (1)

DEZEMBRO - 1997

 


 

 

 

Nas notas anteriores sobre a formação do cristianismo e a figura de Jesus, sempre insistimos na compreensão de Jesus a partir do mundo camponês galileu. Por não considerar este envolvimento com a devida atenção, certos estudos excelentes - como o já mencionado livro de Crossan: "Jesus histórico"- perdem em credibilidade. Crossan vê em Jesus um respeitado mestre em Israel, um "camponês cínico", um "radical intinerante", mas no nosso entender não estuda com as táticas e estratégias dos próprios camponeses. Ainda é muito "cristocêntrico" nas suas colocações.

Ora, como emergiu ultimamente no Brasil o movimento dos "sem terra", talvez valesse à pena aprofundar com maior cuidado esse ponto. Pensamos que não se pode entender o movimento chamado "de Jesus", sem entender o movimento dos camponeses. Jesus lidou com uma situação em que os camponeses da Galiléia viviam praticamente "sem terra", trabalhando nas terras dos grandes latifundiários. A concentração latifundiária tinha-se agravado desde o momento em que se iniciou a exportação dos produtos agrícolas da fértil Galiléia: trigo e óleo.

Desde o surgimento da cidade, oito mil anos atrás, os camponeses vivem em sociedades marcados com gritantes desigualdades, injustiças, privilégios por parte de uns e exclusão dos que vivem longe das cidades e dos centros de decisão. Os proprietários e comerciantes apropriam-se dos grãos e demais víveres produzidos no campo, enquanto o produtor camponês é obrigado a apoiar essa elite proprietária e comercial pois dela depende sua sobrevivência. Sem ter quem levar os produtos à cidade, estes apodrecem. Mais ainda: o proprietário apropria-se da palavra. Ele proclama aos quatro ventos que a terra lhe vem de Deus, dos antepassados, de documentos legítimos de posse.

Acha-se com o direito inclusive de cobrar dos camponeses , "em nome da justiça", os impostos pelo precário uso da terra. Essa é a história que passa a ser oficial, sem condições de resposta por parte dos camponeses, privados das letras, da instrução, do discurso legitimado pela sociedade. A elite reúne as condições, não só de produzir a sua interpretação da história, mas ainda de divulgá-la soberanamente. É a "história oficial". Os "sem terra" tornam-se "sem letras", não sabem nem ler, nem escrever e muito menos elaborar uma história diferente. Quando pretendem alfabetizar-se, são obrigados a aceitar a história oficial, eles que são a principal vítima dela, pois ela passa a ser a única história, a única maneira de se entender o mundo e a sociedade.

À primeira vista os camponeses se conformam, parecem "bonzinhos", simples e até ingênuos. Num próximo bate-papo veremos que não é bem assim.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XVIII

JESUS E OS "SEM TERRA" (2)

JANEIRO/FEVEREIRO - 1998


Será que os camponeses se conformam com a "história oficial", elaborada pela elite e divulgada por todos os meios de comunicação ? Foi essa a pergunta que nos fizemos no final do bate-papo anterior.

Já que os camponeses não dispõem de meios para apresentar a todos sua maneira de entender a história, eles encontram - com astúcia - fios de libertação dentro do próprio tecido opressivo com que a elite procura envolvê-los. Assim encontram um espaço de vida e identidade com o mínimo de risco de repressão. O povo camponês tem uma multissecular habilidade em "desmoralizar" os mais severos projetos elaborados para prendê-lo à obediência e submissão, feita de mil e uma artimanhas que todos que tenham algum contato com o meio camponês conhecem. A elite sabe disso mas se recusa a responder, pois isso romperia a ilusão que a sociedade mantém sobre a legitimidade do poder dos proprietários.

Mas nem sempre as coisas ficam aí, na cotidianidade de uma subversão silenciosa e sutil. Há raros momentos em que a contradição fica explícita, por causa da coragem e liderança de alguém que fale abertamente em nome dos camponeses. Foi o que aconteceu quando Jesus proclamou em alta voz: "O Reino ( de justiça e fraternidade ) está próximo". O momento elétrico, abalava de vez as estruturas da sociedade palestinense: o templo, a dinastia de Herodes e sobretudo a supremacia romana. Daí de um lado a pressa dos apóstolos em anunciar por todos os sítios palavras nunca verbalizadas, mas sentidas no coração desde gerações, e do outro lado a rápida reação das autoridades em eliminar a pessoa de Jesus. Diante do choque causado pelas palavras dos apóstolos, muitos camponeses tomavam de repente consciência do que ficara durante gerações nas sombrias regiões entre consciência e subconsciência, pressentimento emocional e evidência racional.

Mas a elite também percebia imediatamente que não havia como perder tempo. Jesus, o pacífico mestre da Galiléia, era mais perigoso que os profetas exaltados, os guerrilheiros das encostas do Mar Morto, os messias que prometiam à toa mundos e fundos. A elite percebia com rara perspicácia que o anúncio da chegada imediata do reino de Deus colocava em questão o sistema como um todo. A solução encontrada só podia ser a intervenção violenta, por mais que esta acarretasse danos morais à imagem da instituição. Não havia mais lugar para os clássicos recursos de manipulação.

Jesus foi executado, mas o dano causado à versão oficial da história provou ser irreparável. Nunca mais o discurso sobre a legitimidade dos poderosos recuperou sua antiga autoridade, tal o abalo causado pelas palavras do Mestre galileu. Certos conceitos ficaram irremediavelmente desmoralizados, por mais que se teimasse em revitalizá-los. Pois ainda vivemos sob o impacto do eletrizante grito de Jesus: "O Reino de Deus está próximo".


 

CRISTÃOS E JUDEUS

MARÇO/ABRIL - 1998


NESTA EDIÇÃO, A SÉRIE "FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO" SERÁ SUBSTITUÍDA POR ESTE ARTIGO DO MESMO AUTOR. NO PRÓXIMO NÚMERO, DAREMOS CONTINUIDADE À SÉRIE.

A reação do mundo rabino diante da recente declaração do Vaticano em torno da postura dos cristãos no holocausto merece algumas considerações de ordem geral e desejo aproveitar desta oportunidade para compartilhar com os(as) leitores(as) de IGREJA NOVA algumas delas. No meu entender, o tema é de suma importância, em termos não só de ecumenismo mas mesmo da própria definição histórica do cristianismo.

1. Gosto da definição do respeitado historiador da universidade de Glasgow,Frend, que afirma que, até a época de Celso ou seja, até a década de 170 dC, o cristianismo é judeu. Nessa linha seria melhor abandonar de vez o confuso termo "judeu-cristianismo" e passar a considerar o cristianismo, nos primeiros 130 anos de sua existência, ou seja entre 40 e 170, como uma dissidência no seio do judaísmo. Isso é fundamental. Assim como o termo "judeu" no evangelho de São João significa "os que não concordam com Jesus", assim também o termo "gentio" em São Paulo pode perfeitamente significar "os (judeus ou simpatizantes) que não praticam mais a circuncisão, ou as restrições alimentares próprias ao judaísmo ortodoxo".

2. Os evangelhos situam-se na época que eu chamo de "afirmação presbiteral" (80-100). Os presbíteros, na realidade "rabinos da dissidência", insistem nas diferenças, compram brigas com os rabinos ortodoxos. Mexem muito com a tradição em torno do evangelho da paixão, fazendo crer - e hoje sabemos: erroneamente - que o povo judeu teria sido o responsável pela morte de Jesus. As terríveis palavras "Seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos" ainda se cantam na liturgia da semana santa, com grande desorientação dos fiéis. Resta uma tarefa difícil, delicada e importante: reconhecer que os evangelhos também não são imunes ao que chamamos de ideologia, e corajosamente tomar uma posição, pois como está escrito não está de conformidade com o que aconteceu: Jesus foi condenado por tribunal romano, segundo os procedimentos romanos. Isso está claro na pesquisa atual. No limiar do terceiro milênio nós temos que considerar isso, não é de forma nenhuma um assunto secundário, pois o ecumenismo com o judaísmo é o pai de todos os ecumenismos. Não adianta falar em ecumenismo sem considerar esse ecumenismo com o mundo judaico, de onde originou-se o cristianismo.

3. Quando Celso, na década de 170, desafia os cristãos a finalmente encararem o mundo "real" e portanto a cultura helenizada, ele não encontra ninguém a respondê-lo à altura. Foram precisos 70 anos para que Orígenes finalmente reassumisse o diálogo, dando a conhecida guinada para o tema de que a unidade do império é uma predestinação monoteísta e que o imperador entra no plano do único Deus. O sucesso da resposta de Orígenes foi grande e o cristianismo aí espalhou-se com tanta rapidez, que Porfírio, apenas uns vinte anos após a resposta de Orígenes, declarou num tratado contra os cristãos que o cristianismo era pregado "nos cantos mais afastados da terra habitada".

4. Mesmo assim o cristianismo permanece uma religião semita, oriental, apesar das sucessivas ocidentalizações. Só quem lutar por conquistar uma sensibilidade semita pelas palavras, pelas imagens, pelo jeito de ser semita é que pode penetrar de verdade nos textos sagrados. Praticamente devemos tudo aos judeus. O verdadeiro ódio aos judeus que se percebe em eminentes padres da igreja deve ser definitivamente superado, pois não tem fundamento. Isso aplica-se a quase todo o pensamento cristão. O cristianismo nem de longe fez os esforços que se fazem necessários nesse sentido.

5. A cultura cristã ocidental de nossos dias permanece anti-semita, pois a perseguição aos judeus na Alemanha nos anos 30 não se deve unicamente ao nazismo. Em muitos lugares os cidadãos, cristãos na sua grande maioria, colaboraram com gozo e exaltação à humilhação dos judeus, foram "colaboradores benevolentes" como diz um livro recente, por sinal traduzido pela Companhia das Letras (SP).Isso é a grande vergonha e nesse sentido a recente declaração do Vaticano vai no bom sentido, embora sendo largamente insuficiente. Oxalá abra para mais seriedade no tratamento do tema.

6. Esse é um tema para os cristãos do Brasil. Nós não somos tão ocidentais como os europeus, temos uma "fértil fronteira" com o Islã (veja o livro "Casa Grande & Senzala") e uma mais fértil ainda com os mundos africano e indígenas, podemos colaborar na discussão e sobretudo conscientização, mesmo nesse tema que aparentemente pouco nos toca.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XIX

A MISSÃO DOS DOZE

MAIO - 1998


A Igreja interpreta freqüentemente o relato da missão dos Doze (Mc 6, 6-56) como um texto fundador do sacerdócio cristão, no sentido de estabelecer para os sacerdotes um estilo de vida muito diferente dos comuns dos mortais, muito mais radical. Recentemente, Theissen viu no episódio um projeto de se formar um corpo de "intinerantes radicais" a percorrer a Galiléia sem apelar para a formação de um "sacerdócio". Mas em ambas as leituras não se entende bem o porque de tanta exigência, tanta radicalidade. Falta raiz na realidade vivida.

Lendo o texto de Marcos em comparação de um lado com textos do Antigo Testamento e do outro lado com as tradicionais estratégias dos camponeses de todos os tempos, pode-se perceber várias analogias interessantes. Os discípulos não são simplesmente enviados para "andar", para "deixar tudo", para ser radicais no comportamento. Eles são enviados para realizar uma tarefa específica: anunciar que o tempo já devidamente anunciado por Moisés e Elias chegou. Estamos no tempo do exôdo e da páscoa. Agora, nestes dias, estamos passando do Egito, a travessia do Mar Vermelho, o retiro de quarenta anos no deserto, o maná, as tábuas da lei do Sinai, a finalmente arca da aliança, assim também os Doze ao mesmo tempo anunciam e realizam a nova páscoa, uma nova travessia

( do lago Genesaré ), um novo retiro no deserto (do outro lado do lago), uma nova alimentação no deserto (Jo 6), um novo Sinai e finalmente a remoção do sistema opressivo que se instalou no templo e a instalação de uma nova ordem social.

A autoridade dos Doze é absolutamente nova, não aquela dos escribas e fariseus e demais membros da elite que se apropriou do templo. O templo tem que ser restituído a Deus: "A casa de meu Pai é uma casa de oração e vocês fizeram dela um covil de ladrões". Como já vimos anteriormente, no momento do anúncio de tão espantosa novidade (evangelho), tudo tem que ir depressa. Daí a missão de 72 discípulos a percorrer todos os sítios da Galiléia. Daí também a rápida e brutal eliminação do homem que tinha anunciado publicamente a mensagem que feriu o âmago do sistema. Mas mesmo assim, a memória subversiva do rompimento público entre o movimento camponês e o da elite do templo, da casa de Herodes e do império resultou numa mudança permanente do modo em que os camponeses se vêem a si mesmos e entendem suas vidas.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XX

A TÁTICA APOSTÓLICA

JUNHO - 1998


Vale a pena averiguar, no capítulo 6 do evangelho de Marcos, como Jesus e os apóstolos conseguem chegar até as autoridades do templo e fazer a proclamação pública da irrupção do reino de Deus diante de todos, mediante bem planejadas e cuidadosas táticas.

Em primeiro lugar Jesus usa a mobilidade que lhe é concedida por sua condição social de carpinteiro. Carpinteiros e pescadores fazem parte do mundo camponês, embora exerçam uma profissão marginal em relação à produção de alimentos, mas eles podem circular livremente sem criar suspeitas por parte das autoridades, em oposição aos camponeses que ficam diretamente ligados à terra. Jesus assim se desloca de sua aldeia que fica em Nazaré para um centro maior, Cafarnaúm, onde começa a relacionar-se com pescadores, fazendo deles seus companheiros. Uma movimentação em grande escala no mundo camponês certamente teria provocado suspeitas no meio das autoridades que cuidadosamente controlam tudo, como os evangelhos bem atestam. Um movimento de pescadores e artesãos, contudo, suscita menos desconfiança.

Mesmo assim, Jesus ao enviar os apóstolos de dois em dois pelos sítios da Galiléia, recomenda que eles freqüentem unicamente casas dispostas a recebê-los. Não devem ir de lugar em lugar nem falar em praça pública. Nas casas pode-se discutir a boa nova do reino iminente, entre simpatizantes e eventualmente vizinhos que vão chegando. Os apóstolos têm que "sacudir a poeira das sandálias" contra os que não simpatizam, como advertência ( ameaça ? ) contra possíveis traidores. É preciso trabalhar em segredo.

Mas aos poucos a elite vai tomando conhecimento que algo está ocorrendo no tão submisso e pacato mundo camponês. O povo começa a falar de um poderoso curandeiro e mesmo a casa de Herodes começa a inquietar-se. É preciso que Jesus se retire com os apóstolos para lugares ermos, na fronteira, além do lago de Genezaré, logo depois da volta destes. Ele quer evitar um confronto direto com as autoridades e criar espaço para um grupo mais amplo de seguidores e simpatizantes. Regiões de fronteira sempre são difíceis de serem controladas.

Assim Jesus e os seus estão seguros, mas não despercebidos. Logo depois da alimentação milagrosa no ermo, uma delegação enviada pelas autoridades pede uma declaração pública de suas intenções reais. Ele a recusa, respondendo de maneira velada e ambígua. "Cuidado com o fermento dos fariseus e de Herodes"( Mc 8, 15 ). Não há mais como escapar: um confronto aberto torna-se cada vez mais inevitável, como veremos na próxima vez.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XXI

A PROCLAMAÇÃO PÚBLICA.

JULHO - 1998


Como vimos no texto anterior, é através de táticas cuidadosamente preparadas e executadas que Jesus e seus apóstolos conseguem chegar ao templo com um número não desprezível de gente camponesa da Galiléia. Se tivessem trabalhado abertamente, as autoridades do templo certamente teriam enviado um contingente de soldados para o norte. O disfarce e o segredo foram vitais na condução do processo, dentro da conturbada Palestina da época.

Posto que a meta é um rompimento aberto com o sistema elitista e dominador que toma conta do templo de Jerusalém, Jesus enfrenta adversários desiguais.

Ele e seus seguidores camponeses não dispõem dos meios políticos, econômicos e sociais comuns para resistir ao poder da elite no poder. Mesmo assim, a experiência de Jesus mostra que existe poder na margem da sociedade estabelecida, poder de imaginação, de fé, de habilidade e de astúcia por parte dos pobres. O poder da religião, afinal de contas. A lógica emocional da religião, mais forte que a lógica puramente racional dos poderes constituídos. Jesus usa o poder da religião de maneira hábil para chegar a

desestabilizar abertamente o sistema em vigor: "O reino de Deus está próximo..".

Como já se disse aqui, o choque foi elétrico. As autoridades sentiam-se atingidas de cheio, não só o pessoal do templo (17 mil sacerdotes), mas também a casa de Herodes e mesmo a representação romana em Jerusalém.

Matando Jesus, as autoridades cometeram um erro histórico. Rapidamente a figura de Jesus foi um ponto de atração por toda parte: na Síria, no Egito, na Ásia Menor, em todo o Mediterrâneo e no interior até a Mesopotâmia. O que doravante resta aos donos do poder é o incansável empenho em manipular a mensagem contundente de Jesus, um processo que já dura dois mil anos, ao lado do processo igualmente tenaz, por parte dos herdeiros dos camponeses da Galiléia, em preservar o evangelho de forma original, com o nervo ativo de quem lhe imprimiu o ritmo e as táticas nos inícios.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XXII

O EVANGELHO DOS ANÔNIMOS (O1)

AGOSTO - 1998


Um aspecto importante e pouco estudado da primeira história do cristianismo toca a maneira em que as pessoas "comuns" entendem a boa nova de Jesus e de seus apóstolos, o evangelho dos anônimos. Desta vez não é Paulo quem fala, nem alguém dos apóstolos, é a cultura dos seguidores da época que fala na sua simplicidade e no seu poder criativo. Nem sempre as autoridades da comunidades gostam dessas narrativas, e freqüentemente as consideram apócrifas, pouco confiáveis. Mas o que nos interessa pelo momento é captar a vida das origens, não a idéia que teólogos ou bispos possam fazer docristianismo. Nos próximos artigos vamos falar de alguns desses textos, que até hoje marcam o imaginário cristão.

Começamos com uma linda história, publicado em português pela Vozes, em 1990, intitulado A Infância de Jesus por Tomé. É do século II, provavelmente de origem síria. O texto sempre foi muito popular, existem versões antigas em grego, siríaco, latim. Conta os prodígios operados por Jesus entre 5 e 12 anos. Ele brinca com passarinhos que lhe obedecem; causa cegueira nos que o ofendem; mata os que o batem sem fazer nada, pela simples força de sua presença; estuda com o professor Zaqueu mas sabe mais que o professor; ressuscita a um menino; leva água num jarro quebrado; consegue uma colheita excepcional para toda a aldeia; passa para dois outros professores que tampouco conseguem ensinar nada; cura o irmão Tiago mordido por uma cobra; ressuscita várias pessoas; e finalmente, no auge dos prodígios, vai a Jerusalém aprender com os doutores, e acontece o incrível: ensina aos doutores da lei. Um menino de Nazaré ensinando aos doutores de Jerusalém! É o máximo!

Aqui temos pois um Jesus brincalhão, bem diferente do Jesus sofredor e sisudo de tantas imagens mais oficiais. Lembramo-nos logo dos versos de Lucas 7, 34: "Veio o Filho do Homem, que come e bebe"...(em contraste com João Batista que nem come nem bebe), o profeta alegre e livre que ao longodos dois mil anos de cristianismo suscitou muitas imagens de um Jesus que gosta da vida e anima a dança, o canto, a cultura da liberdade por exemplo dos "hippies" da década de 1960, como no super-espetáculo Jesus Christ Superstar.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XXIII

O EVANGELHO DOS ANÔNIMOS (02)

SETEMBRO - 1998


Uma segunda figura que ocupa o palco central do evangelho dos anônimos é Maria. A tradição cristã guarda um texto, intitulado "A Natividade de Maria", ou ainda "O Proto-evangelho de Tiago". Esse evangelho conserva elementos de uma história muito difundida desde os inícios. O texto foi composto no Egito, por volta de 200 e difundiu-se por toda parte, pois temos versões antigas em siríaco, geórgico, copta, etíope, latim. Pode ser encontrado numa edição da Vozes de 1991. Conta o nascimento de Maria, filha de Joaquim, homem rico, e de Ana. Maria aprende a andar, mas só faz sete passos no chão comum da terra, pois imediatamente é levada ao templo para ser educada por sacerdotes e preparada para ser mãe de Jesus. Maria não toca no chão comum dos mortais: "nenhuma coisa vulgar ou impuro passou por suas mãos", diz o proto-evangelho de Tiago. Encontramos já aqui o postulado da virgindade por assim dizer "teológica" de Maria, uma virgindade que deve ser interpretada dentro do respeito extremo para com aquela que foi chamada a ser a mãe de Jesus. O quarto de Maria no templo na realidade é um oratório. Ela é alimentada pelas mãos de um anjo e vive afastada dos demais.

Finalmente é dada em casamento ao viúvo José, que já tem 89 anos e de cuja vara sai uma pomba. Desta forma Deus indica o privilegiado pai adotivo de Jesus. Rezando no seu oratório, Maria recebe a visita do anjo Gabriel que lhe dá a incrível notícia de que foi chamada a ser a mãe de Jesus.

Dá para perceber-se que esse evangelho é uma sedimentação literária de muitas histórias que corriam nas comunidades acerca de Maria. Por exemplo: segundo o proto-evangelho de Tiago, Jesus teria nascido em circunstâncias de marginalidade, no meio de pastores e magos. Assim sugere discretamente que o nascimento teria sido clandestino. Na literatura rabínica, tanto os pastores como os "magos do oriente" são discriminados. Ninguém deve comprar leite, lã ou carne diretamente a pastores, pois são ladrões, que desviam parte do rebanho do dono. Os magos também não merecem confiança, e é proibido falar com eles sob pena de morte. Será que isso indica que Jesus tenha nascido como um "fora da lei", talvez um filho nascido fora do casamento legal? É uma hipótese com base documental, que não pode ser descartada sem mais nem menos. Versos que podem ser invocados são:Mt 1, 19: José resolve repudiar sua mulher, assim como Jo 8, 41: "Nós não nascemos da prostituição".

Invoca-se igualmente o comportamento distante de Jesus diante de Maria: nunca a chama de mãe. Aqui não é o lugar de aprofundar essa questão e remetemos simplesmente a um autor que aprofunda a questão, X. Pikaza: "Não é necessário descartar a possibilidade muito longínqua de que Jesus seja filho ilegítimo de Maria". Veja Pikaza, X., Los orígenes de Jesus. Ensayo de Cristologia bíblica, Sigueme, Salamanca, 1976; Idem, La madre de Jesus, Salamanca, Sígueme, 1989.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XXIV

O EVANGELHO DOS ANÔNIMOS (03)

OUTUBRO - 1998


Uma terceira figura central do evangelho dos anônimos é José, o homem escolhido para viver ao lado de Maria e de educar o menino Jesus. A tradição guarda uma História do Carpinteiro José, editada pela Vozes em 1990 e portanto acessível ao público brasileiro. Composta por volta de 400 no Egito, com versões antigas em língua copta e árabe. A tradição em torno de José tem evidentes marcas do culto egípcio a Osiris, pois é muito concentrada nas narrativas da morte e do sepultamento. Depois de viver 40anos solteiro, José casa-se e vive com sua mulher outros 48 anos.

Depois da viuvez de um ano, Maria lhe é confiada, com quem vive três anos antes do nascimento de Jesus. A gravidez de Maria lhe causa o maior espanto, até que o anjo esclarece que ela está grávida do Espírito Santo . Aí ele se conforma e pelo resto sua vida corre tranqüila e exemplarmente. Ele é o exemplo perfeito de um operário aplicado e fiel. José é um homem saudável: "Não havia um só dente acareado em sua boca". A morte de José é descrita comtodos os pormenores. Jesus vem consolar seu pai, assim como Maria. O luto envolve toda a cidade de Nazaré, anjos descem do céu para amortalhar o corpo e Miguel e Gabriel levam finalmente a alma ao céu.

Essas histórias de Maria e de José refletem em espelho a vida do "comum dos mortais", bem diferente da vida dos monges e celibatários que enchem as bibliotecas. Estamos diante da maneira em que as pessoas que viviam em família se imaginavam a "sagrada família" e procuravam imitá-la. Estamos perto da vida cotidiana da imensa maioria dos cristãos. Eis o "evangelho dos anônimos".


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XXV

O EVANGELHO DOS ANÔNIMOS (04)

NOVEMBRO - 1998


O Evangelho de Maria Madalena, do século II, editado pela Vozes em 1989, abre-nos uma janela para o mundo feminino em torno de Jesus. O comportamento de Jesus em relação à samaritana, à madalena, às mulheres apóstolas, provou sendo contagioso. As mulheres são essenciais no primeiro seguimento, oferecem suas casas para as reuniões (At 12, 12-16), hospedam os missionários (At 16, 12-14), confeccionam roupas para a comunidade (At 9, 36-39), dirigem comunidades (At 18, 26-27), falam nas reuniões (At 21, 9) e sobretudo:

preparam os alimentos. São elas que dão o primeiro encaminhamento ao projeto de Jesus e ele, por sua vez, tem a sensibilidade de perceber o potencial da mulher, chama a atenção dos discípulos machos para a importância da mulher, não hesita em abordar as mulheres em público, contra as convenções sociais da época. Fala com uma mulher samaritana na beira do

poço de Jacó, com espanto dos discípulos, conversa com Maria e Marta na casa do amigo Lázaro. Em Mt 26, 6-13, uma mulher derrama perfume sobre sua cabeça. Diante do escândalo geral dos discípulos ("O perfume podia ser usado para alguma boa obra"), Jesus se limita a dizer: "Onde quer que venha a serproclamado o evangelho, em todo o mundo, a boa obra que ela fez será contada em sua memória" (Mt 26, 12).

Mas esse comportamento de Jesus gerou um grande desconforto no meio dos apóstolos machos. O exemplo mais claro é o de Maria Madalena, a única mulher a ser mencionada, na primitiva tradição, como apóstola. Todo o acontecer em torno da ressurreição tem Maria Madalena como figura central. No mencionado Evangelho de Maria Madalena, Maria evangeliza os homens.

Num determinado trecho, Pedro contesta a autoridade dela, sente-se ameaçado e fica nervoso: "Será que o Salvador falou secretamente com uma mulher sem combinar conosco? Será que nós temos que escutá-la? Será que ela é maior do que nós?". Levi intervém e defende Maria: "Se o Salvador a estimou, quem é você pararejeitá-la? Sem dúvida o Salvador a conheceu muito bem

e a estimou mais do que a nós". No Evangelho de Tomé, o próprio Jesus assume a defesa de Maria Madalena diante de Pedro: "Simão Pedro disse: "Que Maria saia do nosso meio, porque as mulheres não são dignas da vida". Disse Jesus: "Vejam, eu meencarregarei de fazê-la homem, para que ela também se torne um espírito vivo, semelhante a vocês homens. Pois cada mulher que se fizer homem entrará no reino dos céus" (Logion 114).

Como era de esperar-se, a tradição literária cristã oficial ficou do lado de Pedro, enquanto a imagem de Madalena, que atrapalha e incomoda, é afastada do modelo. Maria Madalena é assimilada à prostituta anônima de Lc 7, 36-50, ou ainda a Lc 8, 1-3, onde se lê que as mulheres que seguiam a Jesus "haviamsido curadas de espíritos malignos e doenças". Sobretudo a partir do século V (papa Gregório Magno), a imagem de uma Madalena fica de tal forma discriminada que seu nome evoca a prostituição: ela vira símbolo da prostituta arrependida, da "pecadora convertida", praticamente até os nossos dias.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XXVI

O EVANGELHO DOS ANÔNIMOS (5)

DEZEMBRO - 1998

 


 

 

 

Uma outra figura feminina da antiga tradição cristã, ao lado de Maria Madalena, é Tecla, a mulher destemida. É uma figura lendária que aparece nos Atos de São Paulo, redigidos no final do século II na Ásia Menor. Paulo vai de Damasco a Icônio e Mira, segue pois um itinerário diferente dos Atos dos

Apóstolos que figuram no Novo Testamento. Olhando pela janela de sua casa em Icônio, Tecla vê mulheres conversando com Paulo e colaborando com ele na missão. Seu coração arde no desejo de fazer parte desse mundo, ela é fascinada pela palavra de Paulo e arrebatada para o círculo dele. Quer participar da aventura daquele homem, ao ponto de vestir-se de homem para poder acompanhar a Paulo nas suas viagens. Resiste aos mais estranhos perigos, aos mais ousados avanços masculinos, salvaguardando sempre a sua virgindade.

Tecla consegue estabelecer uma amizade com Paulo acima da barreira sexual, e desta forma quebra o tabu da não-comunicação entre homem e mulher. Paulo e Tecla andam juntos pelo mundo, solidários na idéia da missão. Tecla é o símbolo daquelas mulheres que deixam o marido, os filhos e a casa para caminhar pela vida em liberdade, prosseguindo uma missão. Os numerosos santuários dela, até hoje espalhados por todo o mediterrâneo e Oriente médio e muito freqüentados por mulheres, significam até hoje um refúgio para as mulheres, onde elas podem fugir um pouco de sua família, mesmo que seja por

pouco tempo. O caminho de Tecla leva longe do jugo do marido e dos filhos, é um caminho de liberdade para a mulher.

É bem provável que Tecla nunca existiu. Mesmo assim, o impacto de sua história sobre a condição das mulheres foi enorme. É que a vida literária pode ser mais "real" que a vida real. A história de Tecla, inserida na história de Paulo, mostra que a mulher pode acompanhar o homem na liberdade, que sua "prisão domiciliar" não é irrevogável. A extraordinária difusão da lenda de Tecla mostra como o ideal da liberdade nunca deixou de exercer uma grande atração sobre o imaginário cristão. Perpétua, uma mulher casada, que existiu realmente e foi mártir em Cartago, nem de longe alcançou o grau de

popularidade de uma figura lendária como Tecla, que simboliza a salvaguarda da personalidade, ameaçada de aniquilamento pela sociedade, assim como a virgindade como forma de afirmação da personalidade feminina.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO 27.

O EVANGELHO DOS ANÔNIMOS (6)

JANEIRO/FEVEREIRO - 1999


O nosso bate-papo sobre a formação do cristianismo já alcançou o respeitável número de 27 textos. Ou seja: estamos mais de dois anos nos comunicando em torno desse tema. Devo agradecer o interesse de vocês, leitoras e leitores, pois de vez em quando capto uma reação, um comentário, e isso me faz bem.

Pois "pregar no deserto às pedras" não é lá muito agradável, como já dizia o Padre Anchieta.

O tema dos evangelhos anônimos não está de forma nenhuma esgotado. Há muito que dizer e hoje quero retomar o assunto que nos ocupou nos últimos cinco textos. Lembro que o cristianismo produziu nos primeiros séculos uma infinidade de lindos textos sobre a infância de Jesus, o nascimento e a educação de Maria, a vida de José carpinteiro, as viagens de São Pedro e São Paulo, as histórias de Nicodemos e Pilatos, as andanças de Maria Madalena e Santa Tecla. A igreja não achou esses textos dignos de entrar no rol dos livros sagrados e os tratou de "apócrifos". Mesmo assim, o povo sempre os cultivou com muito carinho, e assim fizeram os artistas, os músicos, os sonhadores, os poetas. As pinacotecas, os catálogos de obras poéticas e musicais do mundo cristão estão repletos de evocações apócrifas, muito mais do que de evocações do sisudo cristianismo dogmática que a igreja produziu.

Com a queda do exacerbado racionalismo que reinou nos estudos até bem pouco tempo atrás, os evangelhos anônimos estão sendo revalorizados hoje. Hoje todo mundo valoriza a "inteligência emocional", os sonhos como meios de se conhecer a realidade, a mística e o imaginário. E nessa corrente entrou a nova valorização dos evangelhos anônimos.

Só podemos ganhar com isso. Pois hoje descobrimos o frescor de um cristianismo saboroso, do leite e da maçã, do riso de Jesus e do aconchego no seio de Maria. Um cristianismo cotidiano, com José na oficina do carpinteiro e Jesus ajudando seu pai. Maria tirando água da fonte no pequeno vilarejo de Nazaré ou limpando a casa como milhões de donas de casa antes e depois dela. Os meninos brincando lá fora, o sol entrando pela porta da casa. As uvas e os grãos de trigo, o cheiro do mundo camponês que pervade os milênios. Um cristianismo alimentar não divorciado da cozinha, longe dos conventos e perto das famílias. Eis o que os evangelhos anônimos nos deixam saborear, e desejo às (aos) leitoras(es) muito prazer! Oxalá meus textos ajudem para que vocês tomem em mãos esses maravilhosos textos, em parte já publicados no Brasil, pela editora Vozes por exemplo. Numa próxima vez continuaremos. Aguardem


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XXVIII

 

FORMAÇÃO DE UM CRISTIANISMO LEIGO (1)

JESUS, O SOLTEIRO.

ABRIL - 1999


Caros amigos, já estamos com quase trinta pequenos textos sobre a formação histórica do cristianismo e espero que vocês estejam gostando. Se alguém de vocês achar que algum de meus textos seja difícil ou mesmo incompreensível - ou ainda inaceitável - peço-lhe fraternalmente que se comunique com a redação do jornal para que eu possa eventualmente corrigir-me. Como estou escrevendo para ‘Igreja Nova’, uma experiência de cristianismo leigo, pensei em trabalhar agora com vocês o tema de um cristianismo leigo nos primeirosséculos.

Não foi fácil criar um cristianismo adaptado à vida concreta de leigos casados, mulheres e homens de vida sexual ativa e metidos nos negócios do mundo para poder sustentar a família. Afinal, a mensagem original evangélica tem um caráter pronunciadamente solteiro e em muitos pontos parece esquecer o mundo dos pais de família e das mulheres donas de casa e educadoras deseus filhos. Jesus recomenda expressamente que seus seguidores abandonem a família. Ele mesmo abandona a sua, deixa a mãe para trás e vai andando pelos sítios da Galiléia, à procura da liberdade (Mt 10, 35). Seu modelo de vida é calcado nos que vivem sem família e se fazem novos pais, novas mães, novosirmãos, novas irmãs, na fé e na caminhada (Lc 18, 29), pessoas que ocupam o lugar do pai e da mãe, do irmão e da irmã. Quando Jesus celebra a Páscoa, ele não reúne a família, como fazem os judeus comuns, mas sim seus discípulos. Fica claro que ele pretende interromper a ordem patriarcal e instituir uma nova ordem, um novo parentesco, uma nova família. Eis a impressão que ele deixa: a família como tal pertence a um mundo que passou.

Essa postura de Jesus marcou profundamente o cristianismo e de certa formafoi mal interpretada e imitada. Pois por um estranho movimento do espíritohumano, a radicalidade evangélica que, no movimento de Jesus, tinha caraterísticas evidentemente sociais e não era em si anti-matrimonial, transferiu-se para o mais íntimo do corpo: a sexualidade. Podia-se ouvir já, entre os primeiros seguidores de Jesus, expressões como: "os discípulos já não se casam...", "já são iguais aos anjos...", "já alcançaram o mundo do além e da ressurreição...". Por onde se viram as páginas dos evangelhos, cartas, atos dos apóstolos, visões e apocalipses que nos fazem reviver as primeiras experiências, encontra-se um discurso principalmente dirigido a solteiros. O solteiro é capaz de deixar o mundo e de viver uma experiência realmente nova, o casado não. Esse pertence ao mundo.

Eis o que até hoje qualifica o cristianismo e o distingue fundamentalmente  das outras religiões, mais que os superdogmas cristológicos e trinitários com os quais os teólogos se ocupam tão freqüentemente: uma certa postura estóica diante do corpo, uma determinada maneira de se viver o corpo, de ser-corpo. Isso é patente no Brasil, onde tradições cristãs convivem com tradições ameríndias e africanas, e basta observar o dia a dia para ver a impressionante diversidade em que as pessoas vivem seu corpo, uns como que escondendo o corpo, outros manifestando-o em toda a sua exuberância e beleza de formas e movimentos.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XXIX

 

FORMAÇÃO DE UM CRISTIANISMO LEIGO (02)

TOMÉ, O LUTADOR CONTRA O DESEJO DO CORPO

MAIO - 1999


Tomé, o irmão de Jesus, já manifesta uma postura típica diante do corpo que vai caracterizar o cristianismo histórico como um todo. Hoje conhecemosmelhor a grande experiência que se fundou em seu nome e ainda é tão ignoradaentre nós que somos herdeiros do cristianismo ocidental. Esse cristianismo ‘de Tomé’ espalhou-se por amplos espaços da Síria e mais tarde daMesopotâmia e atualmente nos é conhecido graças às descobertas feitas no ano 1945 no vilarejo egípcio Nag Hamadi, onde se encontrou toda uma biblioteca, na qual figura o ‘evangelho de Tomé’, redigido na Síria no século II. Esse evangelho, que reúne 118 ditos de Jesus, é taxativo: ‘o mundo é um cadáver’(Ev. Tomé, 56). O casamento também. Precisa-se declarar guerra contra essemundo podre, inclusive contra a família e a atividade sexual que perpetua apodridão. O jeito é renunciar ao mundo por um ascetismo sem trégua, lutarcontra o desejo do corpo. O resultado será uma liberdade nunca dantesalcançada, a saída da prisão do corpo e do desejo.

Esse cristianismo sírio não era desprovido de dimensões sociais, pois numa tradição popular expressa nos Atos de Tomé, do século III, você podeencontrar a história do palácio de rei Gundaforo, rico e vivendo bem, masque deixa os pobres penetrar no seu palácio e gozar das boas comidas. Você  pode deliciar-se com essa história através do livro do pesquisador americano Meeks, recentemente editado pela Paulus de São Paulo sob o título ‘As Origens da Moralidade Cristã; Os dois primeiros Séculos’ (1997). Mesmo assim, percebe-se na Síria sobretudo a tendência de se considerar a vida sexual como superada. O sexo não tem mais sentido. A posse do Espírito Santo, conferida pelo batismo, eleva homens e mulheres acima do mundo do desejo. Libertada, a mulher pode postar-se no meio da comunidade de cabelosolto. Nos mesmos Atos de Tomé, uma mulher diz: ‘Não porto o véu porque o véu da corrupção me foi retirado: não me envergonho, porque o ato devergonha foi afastado para longe de mim’. O cabelo solto, símbolo da atração sexual, torna-se aqui sinal da esperança cristã. O batismo joga por terra o desejo sexual.

Você pode compreender, leitor(a), que num contexto como esse era difícilcriar um cristianismo leigo, que valorizasse o casamento, a atividade sexual, a educação dos filhos, a luta pelo pão de cada dia, os negócios aosquais os casados devem prender-se e as profissões que eles têm que exercerpara poder sustentar suas famílias. Vamos ver como isso se conseguiu, masantes temos que contemplar ainda a postura diante do casamento, de algumas outras figuras famosas dos inícios.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XXX

 

FORMAÇÃO DE UM CRISTIANISMO LEIGO (03)

JOÃO E PAULO ANTI-MATRIMONIAIS

( PELO MENOS EM PARTE )

JUNHO/JULHO - 1999


Os grupos em torno de João, na Ásia Menor, são igualmente anti-matrimoniais, pelo menos até certo ponto. Consideram o mundo em perpétua crise com Deus.

Aparece assim desde o prólogo do evangelho de João. O mundo odeia Jesus mas mesmo assim esse não o rejeita. Pelo contrário, é a luz do mundo, a vida do mundo, veio para salvar o mundo. Há uma relação paradoxal que faz com que Jesus exclame: ‘Eu venci o mundo’, e ao mesmo tempo seja vencido pelo mundo, sendo crucificado por ele. A postura dos grupos asiáticos reunidos em torno do nome de João era de solidariedade apesar do sofrimento, não de fuga, como os gnósticos, que ainda temos que considerar em seguida, ou os cristãos do ciclo de Tomé, que já apresentamos aqui. Mas quando se pergunta onde está o mal do mundo, concretamente, a resposta do grupo de João permanece vaga: ‘no desejo da carne, no desejo dos olhos, na ostentação da vida’ (1 Jo 2, 16).

Não se diz explicitamente que o casamento é do mundo, mas a sugestão vai nesse sentido. O que vale mesmo não é o laço familiar mas sim o amor ardente até certo ponto exclusivo no interior dos grupos.

O cristianismo que se formou em torno de Paulo nas cidades do Mediterrâneo ocidental tem participação ativa de negociantes e artesãos, está por conseguinte mais engajado nos negócios do mundo e por isso mesmo o discurso anti-matrimonial é menos contundente. Paulo tem trechos onde condena o mundo, mas em geral o discurso dos grupos paulinos é bem menos negativo do que o dos grupos de João, sobretudo na segunda e terceira geração após o apóstolo.

Mesmo assim esse grupo produziu um texto muito ruim, o sétimo capítulo da primeira carta aos Coríntios, que é, no entender do biblista J. Héring, "o texto mais importante da bíblia inteira para a questão do casamento e temas correlatos", e que "vai determinar todo o pensamento cristão acerca do casamento e do celibato por bem mais de um milênio". Trata-se de um texto alarmista. O centro das atenções é o perigo da imoralidade. O casamento é visto como um "remédio contra a concupiscência", uma defesa contra o desejo sexual, um dique de moralidade. O sexo não é um dom de Deus, mas pelo contrário sinal da falta de vocação. O homem casado perde a "simplicidade de coração" pois "preocupa-se com as coisas do mundo, e como agradar à mulher, e está dividido" (1 Cor 7, 33-34). O casado é um "meio-cristão". "Um texto fatal", no dizer do conhecido historiador Peter Brown.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XXXI

FORMAÇÃO DE UM CRISTIANISMO LEIGO (04)

VALENTINO, O GNÓSTICO

OUTUBRO 1999


Entre os grandes formadores da mentalidade cristã e ao lado de nomes conhecidos como Tomé, João e Paulo, deve ser mencionado um grande mestre cristão que atuou em Roma nos anos 130-140 dC e era proveniente do Egito.

Seu nome foi extirpado da tradição cristã, mas numa consideração especificamente histórica - que é a nossa aqui - não se pode omiti-lo, pois foi importante demais. Os seguidores de Valentino, que a partir da primeira parte do século II se espalharam de Roma por toda parte e tiveram grande sucesso durante séculos, autodenominavam-se, com orgulho, de ‘gnósticos’, ou seja: os que sabem, que entendem, diante de ignorantes e ingênuos. Houve gnósticos famosos como Taciano que elaborou o primeiro evangelho unificado (juntou os quatro evangelhos num só) que foi lido e copiado durante séculos, no Oriente cristão sobretudo, ou ainda Marcião que fez uma releitura genial da obra de São Paulo. O gnosticismo era um movimento de intelectuais e o próprio Valentino foi um homem de extraordinária inteligência, cuja proposta não pode ser omitida, mesmo num breve relato como este. Ele ensinava que o mundo foi originalmente puro espírito mas que por algum erro entrou a matéria. Precisa-se fugir da matéria, deixá-la de lado, e cultivar o espírito. Só os gnósticos escapam pois só eles conhecem essa história da formação do mundo. Os demais vivem na superficialidade e no erro. O gnosticismo ora desemboca num ascetismo severo, ora numa licenciosidade anárquica, nunca num compromisso sério com a construção de um mundo melhor.

Pois para o gnóstico o mundo não tem importância. Precisa-se fugir dele através de um conhecimento superior, deixar ele perder-se no vácuo.

Embora o gnosticismo fosse rejeitado pela igreja, deve-se reconhecer sua grande influência sobre o cristianismo histórico. Muitos ainda hoje aceitam o ‘dogma’ gnóstico de que só o espírito vale, a matéria não. Eles dizem: precisa-se rezar, não engajar-se em movimentos sociais. E rezam: ‘Pai nosso que estais no céu’, mas não ‘seja feita a vossa vontade na terra’. Pois a terra, afinal, não vale nada e por isso os ‘sem-terra’ estão equivocados, deviam desprender-se de preocupações puramente materiais como a da conquista da terra e rezar pela salvação de suas almas.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XXXII

A MULHER E AS ORIGENS DO CRISTIANISMO (01)

NOVEMBRO - 1999


"As monstruosidades, se toleradas e alimentadas, podem ganhar uma espantosa influência e longevidade" (P. Thompson).

A história conta que, numa igreja africana, ainda em 303 dC, as autoridades policiais confiscaram 38 véus, 82 túnicas de mulheres, 47 pares de chinelos femininos e apenas 17 peças de vestuário masculino. Ou seja 167 peças de   vestuário feminino contra 17 de vestuário masculino, o que indica uma participação masculina de mais ou menos 10 % nas comunidades daquele tempo. É a relação que os observadores hoje dão para as comunidades de base no Brasil: 90 % dos (das) participantes são mulheres.

A presença das mulheres era pois preponderante nas origens do cristianismo, mas elas mal aparecem nos textos. Precisa-se fazer uma leitura feminista de textos, mergulhados num universo marcadamente patriarcal e machista. Temos como certo que, a partir de Jesus e até a segunda parte do século II, o cristianismo oferecia amplo espaço para as mulheres. Aqui também precisa-se inverter as perspectivas: mais importante do que estudar o comportamento de Jesus diante da mulheres, é verificar como elas agiram no movimento, se eventualmente encontraram aí um novo espaço de vida. É o que vamos averiguar.

Num primeiro ponto, temos que estudar a situação da mulher no judaísmo. O judaísmo era terrível para as mulheres, não lhes dava espaço senão na cozinha, no cuidado com filhos e empregados, na plantação, no serviço do senhor marido. O livro dos Provérbios termina com uma descrição da "perfeita dona-de-casa" (31, 10-31), que "trabalha com mãos ágeis...noite ainda, se levanta para alimentar os criados...de noite sua lâmpada não se apaga... não come o pão no ócio". Aliás, nunca partilha a mesa com os homens, aos quais lhe compete servir (Gen 18, 9). Seu corpo permanece marcado pela idéia da impureza, seja por causa da menstruação (Lev 15, 19-30: um texto terrível), seja por deitar-se com o marido (Lev 15, 18). Por isso mesmo sempre deve levar o véu na cabeça, mesmo na hora das relações sexuais (Gen 38, 14 sqq.).

Um texto rabínico guarda a declaração de uma piedosa mulher a dizer: "Jamais as traves de minha casa viram as tranças de meus cabelos ".

Só as prostitutas não se cobrem com o véu. A mulher que se arrisca a sair sem véu, pode ser repudiada imediatamente pelo maridos, sem maiores complicações legais. Os rabinos não se mostram em público na presença de suas mulheres. Ao contrário, encontrando-as no caminho, nem as saúdam. O normal é que a mulher se apresenta em público de tal forma que não pode ser reconhecida. Um sacerdote de Jerusalém aplicou à própria mulher o "juízo de Deus", prescrito para mulheres suspeitas de adultério, sem nem reconhecê-la (ibidem). A lista de prescrições discriminatórias contra a mulher na literatura rabínica é interminável. Trata-se de um machismo doentio e degradante. O pensamento de que inúmeras gerações de mulheres passaram por esse regime é quase insuportável, e ajuda a compreender melhor o comportamento de Jesus.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XXXIII

A MULHER E AS ORIGENS DO CRISTIANISMO (02)

DEZEMBRO - 1999


A situação da mulher na sociedade romana não é muito diferente. Ela também é a serva, a pessoa dócil e submissa que em tudo segue o marido. Os filósofos a comparam com "tudo que é vago, sem objetivo, desprovido de forma e de direção". O homem, pelo contrário, é firme, sólido, decidido. "No ato da concepção, é o sêmen masculino que confere solidez e forma à emissão lábil e desestruturada da mulher". Sabemos, através dos tratados cristãos sobre a virgindade, que a mulher romana casada enfrenta perigo de morte a cada parto. Puro realismo: a mortalidade feminina é maior que a masculina, por causa desse fator. O risco é tal que muitas mulheres morrem antes da idade de vinte anos de vida. Além desses perigos físicos, a mulher tem que enfrentar sofrimentos espirituais como a terrível vergonha de uma eventual esterilidade, a humilhação de ser substituída no afeto do marido por alguma escrava mais jeitosa ou bonita. O tema volta a cada página.

Nesses mesmos tratados o casamento é apresentado como uma prisão. Na realidade a prisão começa bem antes, para a mulher. A menina das classes privilegiadas deixa de estudar aos doze anos. Só os meninos continuam, estudando as belas letras e a retórica. Aos quatorze anos ela já é chamadade "domina", "kyria", "senhora". A mãe de Sêneca foi impedida pelo marido deestudar filosofia "pois ele considerava tal matéria um caminho para a libertinagem". A vida da mulher é controlada pela sociedade: roupa, uso do véu, corte dos cabelos. "Para os homens as vestimentas acompanhavam a posição pública. Para as mulheres, eram essa posição": elas sempre têm quepreocupar-se com os enfeites. Nas iconografias romanas a mulher sempre aparece enfeitada. "Vendo que nada mais lhes resta do que partilhar o leito de um homem, as mulheres se põem a enfeitar-se e não têm outra perspectiva".

Uma "prisão sem grades". Em todo canto observam-se nas iconografias o fuso, os trabalhos de fiação da roupa. Uma vez casada, a mulher fica presa àfamília. "Ser mãe de família constitui (na aristocracia do império romano) uma honrosa prisão". Precisa-se usar de astúcia para se livrar dessa prisão.

Um dos instrumentos é a recusa do intercâmbio sexual. Essa mentalidade ‘romana’ ainda marca os escritores cristãos em geral, atéos dias de hoje. O desconforto da tradição cristã no tocante ao relacionamento entre Jesus e as mulheres é flagrante. A memória cristã, comoaliás a humana em geral, é omissa em relação à atuação das mulheres. Nas 672páginas da conhecida "Patrologia" de Altaner-Stuiber, só se mencionammulheres em quatro páginas. Os Padres da igreja não conservam quase nunca as memórias de mulheres, embora diversos entre eles tenham desenvolvido umacorrespondência com mulheres. Das 240 cartas de Santo Agostinho, 14 sãodirigidas a mulheres, mas não se conservou entre seus papéis nenhum escrito redigido por mulher. De São João Crisóstomo se conservam 53 cartas dirigidas a mulheres, entre as quais 17 a Olímpia, grande amiga, mas nenhuma palavra redigida por ela. De São Jerônimo temos 34 cartas a mulheres e apenas uma carta redigida por mulher. Incomoda a imagem de um Jesus que não rejeita o perfume, nem o afeto de uma mulher, que insiste em que a memória da ternura de uma mulher fosse preservada "por onde quer que venha a ser proclamado oevangelho" (Mt 26, 12), que afinal privilegia uma apóstola acima dos apóstolos.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XXXIV

A MULHER E AS ORIGENS DO CRISTIANISMO (03)

JANEIRO/FEVEREIRO - 2000


 

J

 

esus seguia no dia-a-dia os costumes de sua época em relação às mulheres. Nos próprios evangelhos canônicos as mulheres servem, invariavelmente. Quando Jesus vai jantar na casa de Lázaro, é Marta quem serve (Jo 12, 2). As mulheres servem aos homens. Há um grupo de mulheres em torno dele na Galiléia ‘que o serviam’ (Lc 8, 2-3). Marcos 15, 40-41 narra a presença delas na ocasião da morte de Jesus no calvário da forma seguinte: "E também estavam aí algumas mulheres, olhando de longe. Entre elas Maria Madalena, a mãe de Tiago o menor e de José, e Salomé. Elas o seguiam e serviam ("diaconein", em grego) enquanto esteve na Galiléia. E ainda muitas outras que subiram com ele para Jerusalém". Estamos aqui diante de uma memória antiquíssima, provavelmente anterior a Marcos, que menciona o fato que "muitas mulheres" pertenciam ao grupo de Jesus e com ele costumavam empreender as longas viagens da Galiléia para Jerusalém, prestando sem dúvida os serviços básicos (veja também Mt 27, 55 sqq).

 

Mas dentro desse condicionamento Jesus reage de maneira diferente e mostra que tem sensibilidade diante da posição da mulher na sociedade. Quando Ele afirma: "Eu não vim para ser servido mas para servir" (Mc 10, 45), ele fala como uma mulher diante dos homens. Pois comumente a mulher serve, o homem é servido. Quando uma mulher em Betânia derrama óleo sobre sua cabeça, Jesus chama a atenção para a importância do gesto (Mc 14, 9). Ele sintonizava com as mulheres, conversava livremente com elas (Jo 4), embora os homens não gostassem nem um pouco: o comportamento entrava em conflito com a mentalidade machista. Os homens sempre tiveram dificuldade em entender isso como provam certas reações de Pedro (Mc 8, 31 sq), dos discípulos (Mc 9, 30 sq), de Tiago e João (Mc 10, 32 sqq).

 

As mulheres trouxeram perfumes e pomadas para, de alguma forma, cuidar do corpo do humilhado e torturado Jesus depois de sua morte (Lc 23, 55-24, 1).

 

E durante esses dois mil anos, o gesto dessas mulheres se repetiu em mil e uma circunstâncias: elas continuam prestando os serviços básicos em termos de alimentação, saúde, educação e cuidados pelo corpo em geral. É sobre ombros femininos que repousa atualmente grande parte do imponente edifício cristão, que certamente ruiria se elas retirassem seu serviço. Mas isso não aparece muito nos escritos.

 


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XXXV

A MULHER E AS ORIGENS DO CRISTIANISMO (04)

MARÇO - 2000


 

Houve um grande despertar de consciência feminina no seguimento de Jesus. A memória da atuação feminina no seguimento de Jesus destaca-se com perfil bem delineado diante da triste rotina desses quadros femininos judaicos e romanos. Por isso mesmo, ela merece um resgate histórico. A abertura criada por Jesus em relação à samaritana, à Madalena, às mulheres apóstolas, provou sendo contagiosa. As mulheres são essenciais no primeiro seguimento, oferecem suas casas para as reuniões (At 12, 12-16), hospedam os missionários (At 16, 12-14), confeccionam roupas para a comunidade (At 9, 36-39), dirigem comunidades (At 18, 26-27), falam nas reuniões (At 21, 9) e sobretudo: preparam os alimentos. São elas que dão o primeiro encaminhamento ao projeto: pão para todos. Jesus tem a sensibilidade de perceber o potencial da mulher, chama a atenção dos discípulos machos para a importância de uma "revolução silenciosa" protagonizada pela mulher.

 

Para tanto, Jesus não hesita em abordar as mulheres em público, contra as convenções sociais da época. Fala com uma mulher samaritana na beira do poço de Jacó, com espanto dos discípulos, conversa com Maria e Marta na casa do amigo Lázaro. Em Mt 26, 6-13, uma mulher derrama perfume sobre sua cabeça.

 

Diante do escândalo geral dos discípulos ("O perfume podia ser usado para alguma boa obra"), Jesus se limita a dizer: "Onde quer que venha a ser proclamado o evangelho, em todo o mundo, a boa obra que ela fez será contada em sua memória". A "boa obra" de uma comunicação desimpedida entre as pessoas, acima dos preconceitos, dos jejuns e das abstinências. Os discípulos e as discípulas de Jesus são como "aqueles que foram convidados para o banquete das núpcias" (Ap 19, 9). Não jejuam e com isso criam um desconforto no meio dos discípulos de João Batista, que mandam "cobrar" de Jesus um comportamento mais em consonância com a lei (Mc 2, 18-19). Aresposta de Jesus é inesperada: "Podem os amigos do noivo jejuar enquanto o noivo está com eles?" (Mc 2, 19). E acrescenta: "Ninguém faz remendo de pano novo em roupa velha, porque a peça nova repuxa o vestido velho e o rasgo aumenta" (21).

 

Há muitos indícios de desconforto, na tradição cristã, em torno do relacionamento de Jesus com mulheres. Por exemplo a presença de Maria Madalena ao pé da cruz. Os sinóticos colocam ainda Maria Madalena no lugar central, embora assistindo "de longe" (Mt 27, 56), ou "à distância" (Mc 15, 40; Lc 23, 49), mas não mencionam a presença de Maria mãe de Jesus. O evangelho de João, pelo contrário, já realça a presença da mãe de Jesus "perto da cruz", e coloca a Madalena em posição marginal (Jo 19, 25).

 

Pensamos que João representa aqui uma evolução ulterior do imaginário cristão sobre a Madalena, já influenciada pelo puritanismo da época. Outro caso conhecido é Jo 8, 1-11: Jesus perdoa uma mulher adúltera. O texto muito provavelmente não é de João. Um especialista comenta: "O episódio está ausente dos códices do século IV, não é encontrado em nenhum papiro primitivo ou em qualquer citação de um autor cristão primitivo, embora o assunto fosse relevante para tantos temas que discutiram. Acredita-se universalmente que seu estilo difere do resto do quarto evangelho, e interrompe a fluência do texto... Fica bem evidente que (o texto) foi inserido por um editor. Enquanto a maioria dos primeiros líderes cristãos adotava uma posição muito rigorosa em relação ao pecado sexual, esta cena mostrava o perdão em ação. Ela foi introduzida por razões éticas...". Prova de uma luta cerrada nas comunidades entre "puritanos" e líderes mais abertos. Um texto típico de catequese que mostra por um argumento "e contrario" como o perdão era uma regra de conduta difícil: "Quem não tiver pecado lance a primeira pedra". Ainda no século IV, Agostinho demonstra certo acanhamento em admitir um texto tão francamente livre e libertador.

 


 

FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XXXVI -

A MULHER NAS ORIGENS DO CRISTIANISMO (05)

ABRIL - 2000


O caso mais conhecido de uma mulher atuante nas origens do cristianismo é o de Maria Madalena, a única mulher a ser mencionada, na primitiva tradição, ao lado dos apóstolos machos. Todo o acontecer em torno da ressurreição tem Maria Madalena como figura central. Existe inclusive um "Evangelho de Maria Madalena" (A- S 139), redigido no século II, em que Maria evangeliza os homens. Num determinado trecho, Pedro contesta a autoridade dela, sente-se ameaçado e fica nervoso: "Será que o Salvador falou secretamente com uma mulher sem combinar conosco? Será que nós temos que escutá-la? Será que ela é maior do que nós?". Levi intervém e defende Maria: "Se o Salvador a estimou, quem é você para rejeitá-la? Sem dúvida o Salvador a conheceu muito bem e a estimou mais do que a nós" (veja Hoornaert, A Memória do Povo Cristão, 1986, 233). No evangelho de Tomé, um texto muito antigo, o próprio Jesus assume a defesa de Maria Madalena diante de Pedro: "Simão Pedro disse: "Que Maria saia do nosso meio, porque as mulheres não são dignas da vida".

 

Disse Jesus: "Vejam, eu me encarregarei de fazê-la homem, para que ela também se torne um espírito vivo, semelhante a vocês homens. Pois cada mulher que se fizer homem entrará no reino dos céus".

 

Mas a tradição literária cristã oficial ficou do lado de Pedro: a imagem de Madalena atrapalha e incomoda, deve ser afastada do modelo. Desde cedo é discriminada, assemelha-se com a da prostituta anônima de Lc 7, 36-50, ou ainda Lc 8, 1-3, onde se lê que as mulheres que seguiam a Jesus "haviam sido curadas de espíritos malignos e doenças". Mesmo assim, ainda no século V no interior da Síria se venera a Madalena no centro dos apóstolos-homens, ao lado de Maria mãe de Jesus, a animar a igreja e figurar no centro dela. Mas com o tempo, Maria Madalena é eliminada da tradição especificamente apostólica, e reduzida à condição de pecadora penitente. Exemplo típico é um sermão do papa Gregório Magno, proferido em Roma no final do século VI, que identifica Maria Madalena com a mulher anônima do evangelho de São Lucas (Lc 7, 36-50), a pecadora pública, a meretriz (PL 76, 1238). Os termos desse sermão foram copiados séculos mais tarde num sermão do famoso abade Odo II de Cluny (+948), e desta forma passaram para as leituras canônicas e para o imaginário cristão em geral. Maria Madalena passa a ser definitivamente a mulher prostituta do evangelho de Lucas (PL 133, 713-21). Esse processo acompanha o nivelamento e rebaixamento da figura da mulher de vida sexual ativa. Vitória do machismo, sem dúvida, só amortecida pela sensibilidade de artistas, capazes de encontrar em Maria Madalena encantos nada pecaminosos e valores nada desprezíveis. Interessante observar que a exegese praticada pelo papa Gregório Magno é falha, pois nos evangelhos circulam pelo menos quatro figuras femininas marcantes, duas Marias e outras duas anônimas.

 

Vejamos: (1) Maria Madalena, apóstola, figura central da narrativa sinótica da ressurreição (Lc, 8,2; Mc 16, 9; Mt 27, 55-56; Mc 15, 40-41; Lc 23, 49; Jo 19, 25; Mt 28, 1-10; Mc 16, 1-8; Lc 24, 1-40; Jo 20, 1-2 e 11- 18); (2) Maria de Betânia, irmã de Marta e de Lázaro (Lc 10, 38-42; Jo 11, 1- 44; Jo 12, 1-11); (3) A prostituta que entra na casa em que Jesus está reclinado à mesa de um farizeu para comer, "Ela chorava. Com as lágrimas começou a banhar-lhe os pés, a enxugá-los com os cabelos, a cobrí-los de beijos e a ungí-los com perfume" (Lc 7, 36-50); e finalmente (4) A mulher que derrama óleo sobre a cabeça de Jesus antes da paixão e recebe de Jesus a garantia: "Você será lembrada por onde quer que venha a ser proclamado o evangelho" (Mt 26, 6- 13; Mc 14, 3-9; Jo 12, 1- 9). O evangelho de João já confunde essa mulher com Maria, irmã de Lázaro.

 

Isso prova até que ponto os pregadores e teólogos mexeram com esses textos tão libertadores, expressões da maneira de ser e de agir de Jesus de Nazaré.

 

 


 

FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XXXVII -

A SINAGOGA DISSIDENTE

MAIO - 2000


Quando procuramos saber com certo rigor científico como se originou o cristianismo, nos defrontamos com diversas explicações. Uns dizem que Jesus fundou a igreja tal qual a conhecemos hoje, e que por conseguinte São Pedro foi o primeiro papa. A igreja seria a expressão mais legítima da idéia de Jesus. Essa é a explicação católica clássica. Outros dizem que ele pregou uma mensagem subversiva que depois foi recuperada pela igreja. Os que falam assim situam normalmente o surgimento da igreja na segunda parte do século II. Essa segunda explicação começou a ser contemplada no começo do século XX por protestantes alemães, professores como Adolfo von Harnack, Ernst Troeltsch, Max Weber e outros. Eles tiveram que arcar com oposição dentro de suas igrejas, mas sua tese ganhou sempre mais adeptos e, hoje, é aceita pela maioria dos estudiosos protestantes. No campo católico a coisa foi mais difícil. Um padre francês, Alfred Loisy, fez, igualmente, no início do século que se finda, uma claríssima distinção entre evangelho e igreja. Dele é a famosa frase: ‘Cristo pregou o evangelho, mas o que veio foi a igreja’. Loisy sofreu a mais ferrenha oposição, foi humilhado, taxado de ‘modernista’ e morreu isolado de seus colegas. Se eu não estiver enganado, até hoje os candidatos ao sacerdócio católico têm que prestar o juramento anti-modernista. Não sei se já foi abolido. Mesmo assim, a tese de Loisy está sendo aos poucos assimilada nas recentes publicações católicas, e aceita como conclusão de novas e valiosas pesquisas históricas. Efetivamente, depois dos livros de Crossan, Meier, Charlesworth e outros (todos pela editora Imago) é difícil sustentar ainda que Jesus ‘fundou a igreja’.

 

Essa discussão, que até recentemente se moveu entre cristãos, ganhou depois da segunda guerra mundial uma nova e fecunda dimensão por causa da entrada no campo de historiadores judeus como Gera Vermes (também publicado pela Imago). Esses historiadores insistem no caráter judeu do movimento de Jesus. O movimento de Jesus seria um movimento dentro do mundo judaico e farisaico da época. Quando publicou, em 1984, sua obra clássica sobre as origens do cristianismo, hoje amplamente aceita no mundo anglo-saxônico, o respeitado professor Frend, de Glasgow na Inglaterra, um cristão, definiu o cristianismo nascente, até a década de 170 dC, como uma ‘sinagoga’.

 

Esse nos parece ser um interessante ponto de partida para a continuação de nossas conversas em IGREJA NOVA, que já mantemos durante três anos. Proponho então definir o cristianismo emergente como uma SINAGOGA DISSIDENTE do judaísmo tradicional, mesmo do farisaísmo que já é uma dissidência leiga, mais aberta que o movimento dos saduceus, muito tradicionalista, e mesmo dos essênios, marcado por nacionalismo, clericalismo, rigorismo e legalismo. O cristianismo não é nem nacionalista, nem clerical, nem rigorista e nem legalista. Destaca-se diante do farisaísmo por sua postura francamente anti-legalista. É um movimento dissidente, uma sinagoga diferente. A própria sinagoga já exerce uma considerável força de atração sobre pessoas com uma vida religiosa mais profunda, como o monoteísmo, a ética proveniente das reformas de Moisés, e o culto despojado de pompas rituais, centrado sobre a leitura de textos. Há também os aspectos mais antipáticos do judaísmo como as restrições alimentares e a circuncisão, mas é possível que muita gente tenha passado por cima disso com facilidade ou até tenha achado interessantes e "exóticos" esses usos. Seja como for, o cristianismo é uma flor que brota sobre a plantação sinagogal.

 

 


 

FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XXXVIII -

 

 

 

DE TODOS OS RECANTOS DO MUNDO

 

 

JUNHO-JULHO-2000


Nos próximos mini-artigos sobre a FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO, que hoje já chegam a 38 publicados, gostaria de desenvolver esse tema para os (as) leitores (as) de IGREJA NOVA. Vamos entrar em certos pontos discutíveis. Pois como aparecem sempre novos trabalhos sobre o assunto, prefiro comunicar a vocês o ponto onde cheguei nas minhas pesquisas, deixando campo aberto para estudos que certamente virão. Pois o cristianismo brasileiro tem que dominar esses assuntos, não podemos deixar a coisa nas mãos de europeus ou norte-americanos. Seria pois um prazer poder entrar em contato com quem quiser comentar algo, contestando, aprofundando, enriquecendo o tema que é importante para o cristianismo no terceiro milênio. Afinal, a questão é a seguinte: permanecemos dissidentes ou fomos assimilados, enquadrados, ‘domesticados’? É fácil entrar em comunicação comigo: basta escrever à redação do jornal ou simplesmente mandar um e-mail para: hornaert@ufba.br

Como imaginar-se essa ‘sinagoga dissidente’ da qual falei no artigo anterior? Temos uma informação preciosa num texto escrito por volta do ano 120 dC. Nele o autor dos Atos dos Apóstolos (Lucas ou outro, pouco importa) faz uma listagem impressionante das pessoas que ouviram em Jerusalém a palavra de São Pedro no dia de Pentecostes. Eis o texto (At Ap 2, 8-11): "Como é, pois, que os ouvimos falar, cada um de nós, no próprio idioma em que nascemos? Partos, medos e elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judéia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia próximas de Cirene; romanos que aqui residem, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes, nós os ouvimos apregoar em nossas próprias línguas as maravilhas de Deus". Diante do apóstolo Pedro encontram-se judeus e simpatizantes provenientes de quinze regiões do mundo semita, umas próximas e outras muito distantes, reunidos por ocasião da tradicional peregrinação ao templo de Jerusalém. Donde são? 1. Os partos vivem onde hoje ficam o Irã e o Afeganistão. Os peregrinos partos vêm pois de muito longe, da região entre o rio Eufrates e o rio Indus (ou Indo), entre o rio Oxus (hoje Amu Darya) e o Oceano índico. Percorrem pois uma imensa distância para chegar a Jerusalém. 2. A Média é uma antiga região da Ásia, que corresponde ao Nordeste do atual Irã. Os habitantes, conhecidos como medas, e seus vizinhos os persas, formam no tempo em que surge o cristianismo um só povo. 3. Os elamitas são nativos de Elam, uma região antiga do nordeste da Ásia, no leste do rio Tigris, também no atual Irã. 4. Mesopotâmia é o nome que os antigos gregos davam a toda a região entre os dois rios Tigris e Eufrates, na qual floresceram diversas culturas, como a Assíria e a Babilônia. 5. Os que vêm da Judéia são os que viajaram menos pois Jerusalém fica na Judéia. 6. A Capadócia, pelo contrário, fica longe, no leste da Ásia Menor, do atual Mar Negro até as montanhas Taurus na atual Turquia. 7. O Ponto também fica longe, estende-se da Paflagónia no oeste à Arménia no leste. Os limites do sul são as montanhas anti-Taurus. O território corresponde ao moderno Trabzon e Sivas, na Turquia. 8. Quanto à Ásia Menor dos antigos, ela corresponde à atual Turquia asiática, ou ainda à península da Anatólia. 9. A Frígia é hoje também uma região da Turquia. No tempo de Jesus é uma região rica, com cultivo de uvas em grande extensão. O mármore da Frígia é célebre, assim como seu senso de liberdade. 10. A Panfília fica na costa sul da Ásia Menor, entre Galícia e Cilícia, hoje Turquia. Como muitas outras regiões, passa sucessivamente nas mãos de grandes impérios como a Assíria, Babilônia, Pérsia, Macedônia, a dinastia seleucida, Pérgamo e finalmente Roma. 11. No Egito há grandes concentrações de judeus, sobretudo na cidade de Alexandria. 12. As colônias de Líbia próxima de Cirene são fundadas pelos fenícios, estão nas mãos dos romanos. 13. Os romanos são judeus ou simpatizantes do judaísmo que conseguiram a cidadania romana. 14. A ilha de Creta, no tempo do surgimento do cristianismo, está também nas mãos dos romanos. 15. E finalmente os árabes, ou seja judeus que moram na Arábia, a península originária dos semitas, que espalhou sua cultura não só pela Mesopotâmia no leste, mas também pela Síria no oeste.

 

Todo esse pessoal, que fala diferentes línguas, entende o que Pedro diz. Trata-se de uma linda metáfora, segundo a maneira de falar dos semitas, que significa: ‘Estamos entendendo o que esse apóstolo quer dizer. Ele não é daqueles que dizem que o judaísmo tem que ficar fechado em cima da nação judaica. A mensagem de Moisés é para todos, para toda a humanidade’. Eis um pensamento que brota das sinagogas espalhadas pelo mundo afora. Não é um pensamento que provém dos saduceus que se agarram com unhas e dentes à tradição mosaica entendida de maneira estrita, é um pensamento aberto aos quatro ventos.

 

Após o exílio da aristocracia judaica em Babilônia (no séc. VI aC.), muitas famílias judaicas não voltam para a Palestina mas se espalham em ‘diáspora’ (em grego: dispersão) pelas cidades do mundo oriental, desde o atual Irã até a atual Turquia. São os assim chamados ‘estrangeiros’, que não aceitam a religião do lugar onde vivem, pois são monoteístas e seguem a lei de Moisés. Para manter sua religião, eles ficam se reunindo entre si. Essa reunião chama-se ‘sinagoga’ (em grego: reunião). Em muitas regiões, esses judeus não gozam de boa reputação e por isso mantêm um elo muito forte entre si. O horizonte da diáspora é imenso e a sinagoga permite que os judeus criem uma cultura forte sem o apoio do estado ou das autoridades locais. As sinagogas permanecem autônomas, são associações livres de pessoas, com invejável estrutura democrática. No tempo de Jesus, a experiência de quinhentos anos de sinagoga permite ao judaísmo espalhar-se na imensidão de um mundo que vai do Irã, da Mesopotâmia e do interior do Egito até além do "muro de Adriano" na Britânia, na Escócia e na Irlanda. O judaísmo atinge regiões onde nem os soldados de Alexandre Magno (século IV aC), nem os romanos nunca pisaram.

 

As pessoas que se encontram diante de São Pedro no dia de Pentecostes vêm de todos os recantos do mundo oriental, são judeus ‘sinagogais’ por longa tradição, formadas pela maneira sinagogal de se reunir e de se viver a religião, ou ainda simpatizantes do judaísmo, pessoas que se impressionam com a maneira de viver dos judeus.

 

 


 

FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO XXXIX -

 

 

 

QUEM SÃO OS ESTRANGEIROS DA DIÁSPORA?

 

 

AGOSTO-2000


Mas não é só o autor dos Atos dos Apóstolos que menciona gente de tanta procedência reunindo-se diante de Pedro no dia de Pentecostes. O presbítero anônimo que se esconde sob o nome do apóstolo Pedro e escreve por volta do ano 100 dC, começa sua carta da maneira seguinte: ‘Pedro, apóstolo de Jesus Cristo, aos estrangeiros da diáspora: do Ponto, da Galácia, da Capadócia, da Ásia e da Bitínia...’ (1 Pedro 1,1). Ele menciona as mesmas regiões, todas de cultura semita, que os Atos mencionam. Só acrescenta a Galácia, uma região da Ásia Menor. Outro detalhe: ele ainda não fala em ‘cristãos’, mas em ‘estrangeiros’. Como entender isso?

 

Os judeus são considerados ‘estrangeiros’ nas cidades onde se reúnem em sinagoga. Em ambientes de hostilidade, discriminação e marginalização, a sinagoga mostra sua eficiência. Hoje a sinagoga já tem 2500 anos de vida e ainda não demonstra sinais de envelhecimento, por ser uma criação muito original da mente humana, uma organização que evita os defeitos costumeiros das instituições religiosas: o clericalismo, a burocratização, o corporativismo, a separação entre clérigos (que sabem) e leigos (que não sabem). Na sinagoga, todos sabem, o rabino apenas dirige, conserva e lê os textos, deixa todos à vontade para interpretar. A sinagoga não complica nada: segue-se o modelo tradicional judeu, adaptando-o às condições concretas. A sinagoga não reconhece centro decisório fora da própria comunidade local. Não tem bispo nem papa para controlar as coisas.

 

A sinagoga oferece uma organização básica; as reuniões pelo menos uma vez por semana; os calendários de festas anuais; a celebração dos cultos com alternância de orações fixas, leituras, exortações, salmos; o batismo; os cuidados comunitários com velhos e doentes; o conselho dos anciãos presidido por um líder que tem autoridade sobre toda a comunidade; o contato regular com outras comunidades; a discussão sobre eventuais heresias; a ajuda financeira mútua, etc. Podemos dizer que o cristianismo, em termos organizatórios, é de certa forma uma ‘cópia’ da sinagoga. Dela tira pontos positivos e negativos.

 

Um ponto negativo está no privilégio financeiro dado aos rabinos. Esses vivem da generosidade dos pais-de-família. Assim vivem também os novos ‘rabinos’ das comunidades paulinas! As sinagogas são mantidas por judeus de condição social elevada. São Paulo segue esse padrão, relaciona-se bem com as boas famílias das sinagogas por onde prega o evangelho e que o acolhem, e delas recebe o sustento das comunidades. Fica claro pela leitura de suas cartas que Paulo segue esse modelo "familiar". O pouco que sabemos sobre os primeiros anos do cristianismo emergente confirma essa imagem do pai que vai à sinagoga com seus filhos e sua esposa. dos jovens iniciados pelos pais. Uma estrutura baseada na família. Certas cartas paulinas são verdadeiros conselhos para a vida em família. Isso já faz contraste com a postura de Jesus, muito mais livre diante da família.

 

Outro ponto negativo da sinagoga, herdado pelo cristianismo, está no sistema bastante fechado do contrato matrimonial. As cartas de São Paulo, mais uma vez, fornecem dados preciosos. Como o casamento é um arranjo feito pelos pais-de-família, e implica num grave dever de honra para eles, a pessoa casada freqüentemente só tem reais condições de tomar a vida nas mãos após a morte do (da) cônjuge. Aí a continência é um caminho indicado, já que implica num reconhecimento social positivo por parte da comunidade, enquanto as segundas núpcias não são bem vistas. Segundo o historiador irlandês Peter Brown, atualmente ensinando nos EEUU, esse teria sido o caminho que abriu espaço para o viúvo, e mais tarde o celibatário, nas estruturas da igreja. A sinagoga não é pois um ‘mar de rosas’. É uma estrutura histórica importante que marca a organização básica da igreja tal qual a conhecemos hoje, e que deve ser estudada com realismo.

 

Acontece que a ‘sinagoga dissidente’ dos cristãos é uma sinagoga pobre. A leitura da primeira carta de São Pedro mostra que nela vive gente proveniente das regiões orientais do império, como o Ponto, a Galácia, a Capadócia, a Ásia e a Bitínia, que passa "algum tempo" em Roma como empregado doméstico (2, 18) ou escrava em casas de famílias romanas (3, 1), os mais bem sucedidos como artesões ou pequenos comerciantes. Há no bojo do império romano um forte movimento de migração interna por parte de gente sem terra, expulsa de suas terras por causa da especulação em torno de terras produtivas. A lei não protege esse povo "paroikos" (em grego: ‘migrante’. Daí vem a palavra ‘paróquia’) (1,17 da carta, veja também Ef 2, 19), que viaja de lá para cá, sem poder contar com o apoio das autoridades, abandonado à sua própria sorte. Roma é um polo de atração para esse povo: aí há emprego. Quando essa gente chega em Roma, encontra acolhimento na ‘sinagoga dissidente’. Aí existem as boas coisas da vida: a esmola, o jejum, a oração, a ceia, as festas. Organiza-se uma assistência regular aos necessitados através de ofertas voluntárias ou de outras maneiras. Temos um "insight" interessante numa comunidade cristã na Ásia Menor entre 180 e 190 através dos ‘Atos de Pedro’ que menciona escravos, viúvas pobres, um soldado romano e sua esposa, as "matronas" que ajudam a comunidade, dois senadores que fazem o dom de seis mil peças de ouro para as viúvas da comunidade, um outro senador cuja casa acolhe os viajantes de passagem, os pobres e os órfãos. Uma dama afortunada oferece dez mil denários para ajudar os pobres. Vale a pena ler esses ‘Atos de Pedro’. Esperemos poder ter em breve edições em português desses textos.

 

 


 

FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO 40 -

 

 

 

QUEM SÃO OS ESTRANGEIROS DA DIÁSPORA?

 

 

SETEMBRO/OUTUBRO - 2000


A experiência de Damasco deve ser entendida na seqüência do trauma ocorrido na hora do apedrejamento de Estêvão. Paulo compreende que foi um absurdo matar a Estêvão com tanta crueldade, lançando pedras nele até que morresse. Ele descobre o ‘princípio vida’, maior de todos os princípios, maior que o ‘princípio Moisés’. Ao lado de Moisés deve ter espaço para Jesus ou simplesmente para a vida, para a livre expressão da vida.

Moisés não pode encher o universo inteiro. O fanatismo mosaico dos fariseus é tão detestável como qualquer fanatismo.

O espaço para Jesus, reivindicado por Estêvão, na realidade significa um espaço para a mulher samaritana, a mulher adúltera, o bom samaritano, a mulher cananéia, o centurião romano, os am ha’aretz da Galiléia, as mulheres em geral, as crianças, o povo. Uma solidariedade sem fronteiras nem falsa vaidade judaica.

 

DISSIDÊNCIA PARA COMPREENDER

Por compreender isso, Paulo torna-se um fariseu dissidente. Permanece fariseu, mas entra na dissidência. Inicia a dissidência cristã, pois seus escritos são os primeiros que possuímos, bem anteriores aos evangelhos. Por isso, esses escritos não deixaram de influenciar os demais relatos sobre os cristianismos originários. Seu impacto sobre a ulterior história cristã foi a tal ponto determinante, que a grande maioria das histórias do cristianismo traça uma linha direta entre Jesus, Paulo, e a história ulterior da igreja. Paulo aparece como o principal, se não o único, "herdeiro" do projeto original, seu organizador definitivo. Certas palavras de Paulo, enunciadas dentro de um determinado clima cultural e psicológico, atravessaram os séculos como paradigmas inalteráveis.

Por exemplo: o que foi escrito e dito na firme expetativa da volta iminente de Cristo, "ao som da trombeta divina", permaneceu orientando as comunidades quando já se estava convencido que Cristo não voltaria tão cedo.

Outro exemplo: o capítulo sete da primeira carta aos Corintios sobre o casamento. O que Paulo escreveu aí, respondendo a questões práticas da comunidade de Corinto, passou a ser uma "doutrina universal". Foi sobretudo a liturgia que perpetrou essa passagem do fluido da história para o mundo fixo, cristalizado e imutável de pretensas verdades eternas.

 

INFLUÊNCIA NOS EVANGELHOS

Importa pois realçar que os autores dos evangelhos sinóticos sofreram, de uma ou outra forma, a influência de Paulo. Lucas o acompanhou a partir da segunda viagem, durante a terceira viagem e nas duas prisões romanas (At 16, 10 e outros); Marcos o auxiliou nas missões (At 12, 25 e outros textos); Mateus o segue em muitos pontos teóricos. Todos admiram o trabalho de Paulo e adotam seus pontos de vista.

Como Paulo é um dissidente, os evangelhos também adotam uma postura anti-judaica, o que não deixa de apresentar problemas. Pois resta saber até que ponto Jesus foi tão anti-judaico como os sinóticos fazem crer?

Até que ponto esses relatos, produtos de uma influência literária predominante, refletem a realidade vivida por Jesus e seus apóstolos?

Estudar o seguimento de Jesus sem problematizar a influência da literatura paulina sobre as fontes primárias do conhecimento que dele temos, é pelo menos uma operação imprecisa, para não dizer arriscada. Arrisca-se colocar acentos antes paulinos que "jesuínos".

Há decerto um anti-judaísmo um tanto leviano nos relatos da paixão de Jesus.

A famosa frase ‘Seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos’ pode ter sido gritada pelo povo na hora, mas nem por isso podemos atribuir a morte de Jesus ao ‘povo judeu’. Seria o mesmo que dizer que o povo alemão em si é responsável dos horrores da Segunda guerra mundial. A realidade é bem mais complexa e hoje o cristianismo tem que livrar-se desse enraizado e não justificado anti-judaísmo.


 

FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO 41 -

 

 

 

A REAÇÃO DOS RABINOS ORTODOXOS

 

 

NOVEMBRO - 2000


O cristianismo foi se articulando devagar e sempre, e já no final do século I sua importância foi percebida pelos rabinos. Numa data desconhecida entre 90 e 105 dC, os rabinos da Palestina reuniram - se às pressas em Jabné, um subúrbio de Jerusalém. Na agenda da reunião estava o estabelecimento in extremis de um cânone ou rol de seus livros sagrados diante da rápida emergência de uma literatura cristã e da tendência, por parte dos presbíteros cristãos, em equiparar seus evangelhos com a sagrada escritura judaica, e - pior - de se apropriar dos textos sagrados da tradição israelita num sentido cristão. Os rabinos não tinham tempo a perder: o movimento cristão estava atacando com extremo dinamismo o pessoal das sinagogas. Tratava-se de defender a identidade judaica diante do perigo de sua descaracterização que aconteceria fatalmente se os evangelhos cristãos assumissem um lugar igual aos veneráveis livros da bíblia hebraica e fossem igualmente considerados "santos".

 

 

 

SEGURANÇA DOS CRISTÃOS

 

O que acontece é que os cristãos se mostravam extremamente seguros em afirmar que sabem o que Deus planeja. Essa é pois uma certeza tipicamente cristã, um "postulado": Deus se revela aos homens através de Jesus, temos a certeza. Os rabinos reunidos em Jabné reagiram, pois estavam nervosos com a maneira em que a primeira geração cristã aplicava sem mais nem menos "as escrituras" ao profeta Jesus. Mas – no entender dos rabinos- não restava dúvida de que Jesus era um profeta errático, equivocado. Essa liberdade em aplicar as escrituras à figura de Jesus parecia aos rabinos de uma imperdoável leviandade, sobretudo a maneira em que dava a entender que teria existido um "script" elaborado séculos antes, como no caso do texto de Isaías, 7, 14, onde se lê: "A jovem está grávida e vai dar a luz um filho, que ela chamará Emanuel". Historicamente, o texto dirigiu-se ao rei Acaz, cujo reino situa-se no final do século VIII aC, e falava do nascimento feliz de um príncipe na casa real. Passando por cima do contexto histórico e - além disso - traduzindo a expressão "jovem" (mulher jovem) por "virgem" (sugerindo por conseguinte um nascimento virginal), os cristãos aplicaram sem mais nem menos as palavras do antigo profeta ao nascimento de Jesus, com uma liberdade ao mesmo tempo espantosa e ingênua. Foi exatamente contra esse tipo de leitura de sua tradição profética que os rabinos de Jabné apressam-se em tentar preservar suas escrituras sagradas, colocando um dique de canonicidade contra as ondas de interpretação desvairada por parte de grupos cristãos.

 

 

 

REAÇÃO DOS RABINOS

 

Essa reação dos rabinos ortodoxos tem muito a ver com a criação de um judaísmo rabínico, do qual vamos falar no próximo artigo. No judaísmo rabínico, como o termo indica, o rabino das sinagogas toma o lugar do sacerdote do templo. Ele é antes de tudo o homem do livro, um erudito do livro, um "mestre" (rav). Além de conhecer as leis dietéticas, ele conhece as letras da lei e do talmude. É chamado "sábio" (chacham) pela comundidade. Ao rigor não é "líder", nem detém algum "poder" além do poder da palavra que interpreta. Ele não recebe pagamento por seu ensino pois a palavra de Deus é gratuita, e assim ele deve, além da função de rabino, ter uma profissão para sustentar-se. O rabino na sinagoga não corresponde ao clérigo no cristianismo. Tecnicamente ele é um "leigo" sem maiores poderes do que os demais participantes do grupo. Atualmente muitos rabinos são assalariados das sinagogas, não em pagamento de seus serviços religiosos mas como compensação financeira, caso não tenham condições de exercer outra profissão além da palavra de Deus. Há decerto uma tendência corporativista entre os rabinos, mas ela nem de longe chega a formar uma "hierarquia", como é o caso do sacerdócio cristão. O elo entre rabino e a sinagoga como comunidade é muito mais estreito do que o existente entre o sacerdote católico e sua paróquia, por exemplo. De certa forma as comunidades de base trouxeram ao seio do cristianismo uma articulação que já existe 1900 anos no seio do judaísmo. O rabino é antes de mais nada um homem da fala, do raciocínio, da palavra, e não do rito. Ele é de certa forma um "profeta" e forma em torno de si uma agregação de tipo profético. Uma segunda diferença com a paróquia: a sinagoga não obedece à lógica da territorialidade, é um agrupamento livre de pessoas que podem inclusive morar bem distantes umas das outras. A sinagoga não se articula através de um clero. Os judeus não se reúnem em sinagoga porque moram dentro de um mesmo território, mas porque são animados pela mesma fé, e assim se reúnem livremente. A paróquia católica, pelo contrário, é de caráter fundamentalmente territorial. É um corte operado sobre um determinado espaço e corresponde por conseguinte à configuração básica de um "estado". Outra diferença marcante com os rumos que o cristianismo tomou consiste no fato que o judaismo sempre manteve uma postura distante diante das correntes ascéticas. Um eventual cristianismo rabínico provavelmente não teria enveredado com tanto empenho pelos caminhos do ascetismo como foi o caso do cristianismo.

 

 


 

FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO 42 -

 

O JUDAÍSMO RABÍNICO

 

 

 

 

DEZEMBRO - 2000


Em conseqüência da perda do templo em 70 dC, criou-se entre 70 e 200 um judaísmo rabínico que existe até hoje. Com a eliminação de Jerusalém enquanto centro religioso, em 135, as famílias sacerdotais hereditárias e a alta classe judaica se arruinaram definitivamente. Surgiu então a possibilidade histórica das sinagogas independentes. Os rabinos e as sinagogas tornaram-se as instituições normativas do judaísmo. "Governava a palavra". O judaísmo rabínico exige respeito, pois nasceu de uma luta contra um tipo de judaísmo controlado pelas autoridades romanas. A sucessão hereditária no patriarcado judaico era imposta pelos romanos. Depois da destruição do templo e do patriarcado, surgiu o judaísmo rabínico que conseguiu manter firmemente a religião em mãos próprias. Uma libertação a custo de muitas vidas e muito empenho. Essa modalidade do judaísmo enfrentou na história inúmeros problemas, e no século que se finda enfrentou horríveis sofrimentos, a morte de quatro milhões de judeus nos fornos crematórios do nazismo. É uma religião corajosa e muito bonita.

 

O judaísmo rabínico professa uma doutrina oposta ao dualismo das religiões semitas da época. Já dissemos que o judaísmo rabínico formou-se depois da queda do templo em 70 e da supressão da Palestina como terra dos judeus em 135. Repudiava a dicotomia corpo - alma tal qual fora formulada pela filosofia platônica, que o cristianismo segue até hoje. Corpo e alma, para os rabinos, formam uma só unidade humana. Uma idéia como a de Filo de Alexandria, um famoso intelectual judeu, de que o corpo seria apenas uma "máquina" irracional a serviço da alma racional, nunca teria aceitação no seio do rabinismo. Hilel ensinava que o homem tem o dever de manter o corpo saudável e digno. A idéia de uma "mortificação" do corpo com vistas à libertação da alma é alheia ao rabinismo. Também a mortificação monástica não encontra ressonância no rabinismo: um corpo "mortificado" não ajuda a fortalecer a alma, pelo contrário, faz com que a alma também adoeça. O

 

judaísmo rabínico não conhece monasticismo nem eremitismo. "O lema judáico-rabínico é: continência e temperança sim, abstinência não". Mas, apesar das qualidades do judaísmo rabínico, acontece que o destino histórico do seguimento de Jesus não passou pelo rabinismo mas sim pela formação de uma religião específica, distinta da judaica. Não tinha que ser assim, mas foi assim, concretamente. A história humana tem lá seu curso imprevisível. O cristianismo, abandonando a tradição rabínica, encontrou-se quase sem defesa diante do poder de idéias enraizadas acerca do corpo, da alma, da salvação, que o assaltavam tanto do lado oriental-semita como do lado ocidental mediterrâneo. Para poder firmar-se intelectualmente, o cristianismo apelou para ‘mestres’. O século II foi o século dos mestres cristãos, alguns famosos como Marcião, Valentino, Justino, Taciano. Era o tempo em que o cristianismo, pelo menos nas grandes cidades, parecia uma ‘escola’. Tivemos assim um cristianismo de mestres e discípulos, ainda não de igreja. Uma catedrocracia, como se diz, um tanto pomposamente. Esses mestres não devem ser entendidos como "professores" no sentido atual, mas antes, como animadores de comunidades. Eram intelectuais orgânicos, mas não eram ‘pastores’. Diziam as coisas com muita liberdade e no final do século II tiveram que agüentar uma reação forte por parte dos ‘pastores’ que mantinham uma relação mais patriarcal diante das pessoas. Essa dissonância entre ‘professores’ e ‘pastores’ percorre toda a história do cristianismo.

 

 


 

FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO 43 -

 

OS MESTRES

 

 

 

 

JANEIRO/FEVEREIRO-2001


 

Vamos falar um pouco mais sobre os mestres cristãos do século II, pois eles têm muito a nos ensinar. Nas cidades grandes daquele tempo como Roma, Alexandria, Antioquia, o ensino desses mestres caia no gosto pois os romanos gostavam de "escolas". Agiam na sociedade romana diversas seitas filosóficas bem aceitas pelo povo por causa sobretudo do prestígio dos filósofos na sociedade romana. Esse atuava por assim dizer como consciência pública da sociedade, dizia o que os outros não podiam dizer com medo da repressão ou da violência. Para manter sua imagem pública, o filósofo primeiramente tinha que vestir-se de modo a ser reconhecido por todos: barba crescida, veste simples e pobre. Em segundo lugar ele tinha que viver "filosoficamente", isto é, na pobreza e no desprezo do luxo. Freqüentemente dormia no chão, vivia na rua. Assim ele podia até dar conselhos à mais alta autoridade. Os filósofos se tornaram uma espécie de "clero leigo" da sociedade romana.

 

Esses filósofos praticavam uma filosofia para a vida, uma sabedoria, antes do que uma investigação "nas razões últimas" das coisas. Nesse sentido eram diferentes dos filósofos modernos. Kant certamente neles não se reconheceria nem seria reconhecido por eles. As seitas filosóficas tinham como objetivo oferecer às pessoas um método de se alcançar a felicidade. No século II as principais seitas filosóficas eram o epicurismo, o estoicismo, o neo-platonismo, o cinismo e o pitagorismo. O cristianismo delas emprestou tantas coisas, que é difícil listá-las com certa objetividade: conceitos como conversão, dogma (doutrina do fundador) e heresia (doutrina considerada aberrante); a prática dos "exercícios espirituais" e da meditação diária; as idéias de moral, providência, disciplina, controle sobre o corpo.

 

Diversos cristianismos originários eram simplesmente agrupamentos de pessoas em torno de algum "mestre de vida": é o caso dos cristianismos formados em torno de Marcião, Valentino, Taciano e Justino em Roma. Outras cidades também tinham suas escolas, como Cesaréia na Palestina, onde atuava Orígenes na primeira parte do século III. Houve o caso de um bispo que percorria todo o trajeto da Capadócia até a Palestina para poder participar do curso de Orígenes, o "professor cristão" por excelência. Eram pequenos círculos estudantis de discípulos de ambos os sexos que se reuniam por anos a fio em torno de um guia espiritual. Essas escolas articulavam-se na sociedade ao lado das seitas filosóficas e tinham diversos pontos em comum. Muitos cristãos daquela época estavam convencidos de que seu desenvolvimento espiritual dependia desse contato com mestres amados e prestigiados. Embora esses círculos fossem pequenos, sua irradiação foi grande. Os pequenos círculos de estudos foram as fontes de energia da cultura cristã nos séculos II e III.

 

Na ‘escola’ cristã, a principal lição era a do ‘coração simples’. Possuímos um excelente texto sobre isso, o ‘Pastor’ de Hermas, escrito na primeira parte do século II. Os ‘simples de coração’ encontram na grande cidade ambientes que lhe são por assim dizer conaturais. Embora conservando seu jeito tipicamente judaico, os cristãos logo encontram-se na loja do barbeiro, na oficina do pisoeiro ou do trabalhador no curtume, nas ruas estreitas das "insulae" (favelas) da grande cidade, e passam a conhecer aos poucos os "colégios" ou livres associações de homens livres, libertos ou escravos, que exercem a mesma profissão ou veneram o mesmo deus. Aí existe um gancho com a sociedade. Em todas as cidades do império existem diversos "colégios" ou "confrarias", como por exemplo as dos ferreiros adoradores de Hércules, ou dos comerciantes de roupas adoradores de Mercúrio. As mais prestigiosas dessas confrarias conseguem a proteção de algum "Mecenas", ou seja, de um magistrado ou senador que se disponha a ajudá-las financeiramente. As mulheres não têm acesso a esses "clubes", e não será um dos menores méritos do cristianismo criar escolas femininas, sob liderança feminina (a exemplo de Tecla). A primeira finalidade mais definida de uma associação ou confraria de escravos é a de se providenciar um funeral digno para o membro participante, para que ele não seja jogado que nem um cachorro no lixo, depois de morrer. Daí o sucesso dos cemitérios cristãos entre escravos. Seria possível escrever um ensaio só sobre a relevância dos cemitérios para a propagação do cristianismo. Mas existe também a tradição de se organizar periodicamente um banquete, tanto mais opulento quanto mais rico for o "colégio". O bispo cristão Cipriano, que conhece bem esses colégios, afirma que os dois objetivos da confraria são: o banquete e a sepultura. É de se compreender que o povo gosta muito desses "colégios" e se cotiza para se garantir uma sepultura, erguer um santuário doméstico aos gênios protetores da casa, providenciar o banquete para todos. Os colégios imitam a organização política da cidade e são corpos fundamentalmente democráticos no seio da sociedade.

 

Assim o cristianismo penetra nas sociedades mediterrâneas e aí encontra ambientes que lhe são por assim dizer conaturais. Os cristãos organizam "colégios" ao seu jeito, com forte espírito de solidariedade e muita seriedade no plano ético, e os chamam preferencialmente de "igreja". Não se imagine pois a essa ’igreja’ num ambiente sofisticado, à moda dos círculos intelectuais de hoje. Seu mundo é basicamente o da comunicação oral ou visual, e aos poucos da sedimentação dessa tradição em textos.

 

Quando se diz que o cristianismo é a "religião do livro", é bom que não se esqueça que esse tal "livro" é originalmente uma mera sedimentação de tradições orais e visuais. Por detrás dele vive uma cultura de analfabetos que é a cultura comum, a normalidade da vida. A desqualificação da cultura analfabeta é um fenômeno moderno. Os raros escritos que penetram nas comunidades são as cartas que informam sobre a organização em lugares distantes e são lidas por alguém que saiba ler e depois comentadas oralmente, ou ainda os textos que servem para preparar o pessoal a compreender melhor a importância do batismo, e que são redigidos por algum mestre, como Hermas por exemplo. Daí o ritmo repetitivo e lento do Pastor de Hermas

 

 


 

FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO 44 -

 

AINDA OS MESTRES

 

MARÇ0 - 2001

 


Jesus já dizia que a cidade é um lugar perigoso, pois aí se pratica a "duplicidade de coração". A palavra direta e sincera cede lugar à hipocrisia e à luta do ‘homem contra o homem’. Por isso os cristãos das primeiras gerações entendiam muito bem que é preciso criar um outro espaço social, uma "escola" reunida em torno de um "mestre", um grupinho onde se ensina a preservar a liberdade e viver de coração simples. Como mostram os documentos que possuímos sobre essa história, esses mestres eram chamados também de "profetas" ou "doutores", segundo uma nomenclatura mais tradicionalmente judaica. Instrutores e conselheiros da Igreja, sua autoridade normalmente provinha de uma história pessoal, da força de sua "conversão" (metanoia), e não de algum tipo de autorização que tivessem recebido por parte do grupo.

 

Mestres típicos da virada do primeiro século são o autor do apocalipse atribuído ao apóstolo João, assim como Hermas, o autor do "Pastor", já citado no artigo anterior. Interessante observar que essa "escola" pode ter o nome "heresia", sem que isso tenha um sentido pejorativo. Pois o termo grego provém do verbo ‘escolher’. Os discípulos escolhem o mestre que desejam seguir. No decorrer da história, esse termo adquire um sentido pejorativo, que contudo não lhe é original. Outro termo da época é "seita", uma palavra proveniente do latim secta, que por sua vez vem do verbo ‘seguir’ em latim. Essas palavras tornaram-se pejorativas com a ascendência de uma igreja unificadora a partir da segunda parte do século II. A escola (ou, como queiram, a heresia, a seita) importa por conseguinte numa opção por parte de quem dela participa.

 

É nesse sentido antes sociológico que eclesiástico que devemos dizer sem ironia que o cristianismo entre 100 e 200 é basicamente herético e sectário. É o mesmo que dizer, com outras palavras, que em diversas regiões os primeiros cristãos eram voluntários, que escolhiam livremente o mestre que queriam seguir.

 

A fórmula dessa escola cristã não caiu do céu. É conatural do movimento de Jesus. O evangelho é claro: ninguém consegue viver a mensagem sem seguir um mestre, um "sábio", um profeta, um escriba, um orientador (Mt 23, 34). O(a) seguidor(a) de Jesus precisa pois, em primeiro lugar, saber seguir e escutar um mestre. Depois de dar a boa orientação, o mestre devolve as pessoas à complexidade da vida, não as retém numa instituição. O mestre não é propagandista, não faz proselitismo. Jesus mostra uma repulsa extraordinária e definitiva para com o proselitismo: evita a concentração de massas, não gosta de aparecer. As multidões, a rigor, não entram no seu projeto, senão indiretamente, através da lenta fermentação das idéias. Jesus "permanecia fora, em lugares desertos" (Mc 1, 45), "refugiou-se sozinho na montanha" (Jo 6, 15). No mesmo capítulo 6 do evangelho de João, Jesus se distancia nitidamente de uma "pastoral de massa". "Muitos discípulos voltaram atrás, e não andavam mais com ele"(Jo 6, 66). As assim chamadas "conversões em massa" permanecem superficiais e não resolvem a questão da "duplicidade de coração" que é a principal questão da conversão cristã. Lc 17, 20-2: " A vinda do reino de Deus não tem sinais que poderão ser verificados". Não é observável.

 

Não se poderá dizer: "Ei-lo aqui! Ei-lo ali!, pois eis que o reino de Deus está no meio de vocês". O projeto já está em curso, mas permanece discreto.

 

Jesus opta por um trabalho com pouca gente, em profundidade, não suscita nenhum movimento de massa.

 

Os mestres mais famosos concentram-se em Roma, o palco preferido dos que ganharam renome nas suas terras de origem.. Aí encontramos Hermas e Valentino do Egito, Marcião do Ponto (Síria) e Taciano da longínqua Mesopotâmia, Justino da Palestina e Montano, que atua na Frígia mas cuja influência se deixa sentir poderosamente em Roma. É nos círculos romanos que Tertuliano toma conhecimento do montanismo e decide seguir as lições do distante mestre Montano. Roma é a grande encruzilhada. Como diz Ireneu, para lá "tudo converge". Cidade de perto de um milhão de habitantes (um número enorme para a época), capital do império, é o local onde todos se encontram.

 

Outras cidades também tiveram mestres famosos: ainda na primeira parte do século III temos em Alexandria duas figuras excepcionais: Clemente e Orígenes. A história dos mestres em Roma é de primordial importância para o entendimento do cristianismo como tal pois aí a luta entre mestres e eclesiásticos resulta pela primeira vez numa vitória dos últimos. Em outros lugares a autoridade autônoma dos mestres ainda perdura por muito tempo, em algumas regiões por séculos.

 

 


 

FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO 45 -

O EROTISMO BANIDO

ABRIL/MAIO - 2001


Com este artigo chegamos ao número 45 e proponho que mudemos de foco. Nos dez artigos anteriores, focalizamos o caráter judaico do cristianismo das origens e a injustiça cometida pelo cristianismo histórico em perseguir os judeus. Agora vamos considerar outra deturpação do cristianismo original, que consiste na discriminação do erotismo e da sexualidade em geral. Para muitos, ainda hoje, o pecado mais grave é o pecado sexual. Alguns só confessam pecados desse tipo.

Isso vem de longe. Já no século II dC aparecem no seio do cristianismo sinais inquietantes de desrespeito pelo sexo e pela sexualidade. O apologeta Justino, em meados do século II, já fala de um jovem que quer se fazer castrar pelos médicos para conseguir viver o cristianismo na sua perfeição. No início do século III o grande teólogo Orígenes castra-se efetivamente. Essas práticas, muito divulgadas na época, estão ligadas ao encratismo, um movimento radical que considera a atividade sexual incompatível com a perfeição cristã. Numerosos Padres da Igreja, como João Crisóstomo, Jerônimo e Agostinho, tratam do assunto, na maioria das vezes com simpatia pela tese ascética, sem chegar ao extremo de encorajar a castração. A partir do século IV o tema dos ‘eunucos’ (castrados) figura na agenda das reuniões episcopais, um pouco por toda parte.

Em ambientes episcopais, a luta contra o que se considera ser o mais claro indício da perversão do paganismo, o erotismo, é sistemática. No século IV, quando a igreja ganha os favores do império, um sem-número de templos pagãos passa a servir como igrejas cristãs, depois de devidamente despojados da iconografia anterior, sobretudo das evocações eróticas. Quebram-se as imagens da antigüidade, numerosos baixo-relevos de cunho erótico passam a servir como lajes no soalho de igrejas cristãs, voltados para baixo, evidentemente. Vênus e Baco cedem lugar a Jesus, Maria e os apóstolos. A nudez passa a significar a vergonha de Adão e Eva expulsos do paraíso depois do pecado original, com os órgãos sexuais encobertos. A erótica é banida do mundo da perfeição e o cristianismo torna-se uma religião decididamente anti-sexual. O velho Eros da mitologia grega, filho da Criatividade e da Pobreza, marcado pelo desejo, sai desmoralizado e discriminado.

Santo Agostinho marca o ponto: ‘Todos pecaram por causa de Adão’, e ele lança a suspeita de que o pecado de Adão tenha sido de ordem sexual. Toda a história humana é interpretada a partir de um erro original. Deus está de mal com a humanidade por causa do pecado original. A humanidade, como escreve o mesmo Santo Agostinho, é uma ’massa danada’ por ter ofendido Deus Pai. Como a autoridade de Santo Agostinho é grande, cria-se em torno dele um vasto movimento intelectual que passa por Anselmo, Santo Tomás de Aquino e Lutero, para desembocar na teologia de hoje. Ainda hoje a doutrina tradicional conserva idéias típicas de Santo Agostinho como o pecado original, a rejeição do princípio do prazer e o voluntarismo.

As autoridades eclesiásticas empenham-se em formar quadros clericais devidamente inoculados contra os desejos da carne, o que na realidade significa a instalação de um combate sem tréguas contra o gozo, o prazer da vida, a liberdade dos desejos e da vida dos sentidos. Forma-se um clero ascético, para que esse, por sua vez, influencie os leigos. Os clérigos não enquadrados são perseguidos pelas leis eclesiásticas e qualificados de vagabundos, beberrões, "contadores de piadas", freqüentadores de "tabernas". Num concílio realizado no ano 360, os clérigos que dançam diante do altar são condenados. A dança diante do altar provém do culto a Dionísio, o deus grego da vida e da exuberância vital, do gozo e da festa. A igreja repele pois os sacerdotes "dionisíacos" e lhes prefere os ascéticos. Mas a dança dentro da igreja ainda vai resistir por muitos séculos, como por exemplo aqui no Brasil na dança de São Gonçalo. Um outro concílio, celebrado no ano 398, abre fogo contra as "tabernas". Na época, as tabernas são hospedarias para viajantes. Elas são muitas vezes o único refúgio de viajantes surpreendidos pela noite, e nelas mesclam-se pessoas das mais diversas procedências. Com o advento do cristianismo a palavra "taberna" torna-se pejorativa, vira símbolo de bebedeira, prostituição, libertinagem. Ainda um outro concílio, do ano 436, investe contra o canto profano. O clérigo não pode cantar em festas, no meio de leigos. Doravante só canta na igreja. O sacerdote que gosta de contar piadas não escapa tampouco da ira dos concílios. Um concílio do ano 506 menciona o clérigo narrador de piadas e animador de brincadeiras. O clérigo não deve provocar riso, mas seriedade e penitência. Em todas essas intervenções percebe-se como o bispo se torna o grande fiscal da vida do sacerdote.

Poderíamos alongar a lista mas basta apresentar o tema, como início de conversa sobre uma das mais importantes caraterísticas do cristianismo, hoje contestada por toda parte, ou seja, sua rejeição do erotismo humano.


 

FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO 46 -

O INFERNO E O DIABO

JUNHO/JULHO - 2001


Dentro da repressão instalada no seio do cristianismo contra os impulsos vitais (sexuais e libertários) do homem, os eclesiásticos apelaram para antigos mitos, tanto judaicos como orientais em geral, cultivados pelas pessoas dos primeiros séculos cristãos, sobretudo o mito do inferno e do diabo.

O mito do inferno tem um longo passado, vem dos sumérios e encontra-se nos antigos hebreus, iranianos e mesopotâmicos e, no lado ocidental, nos etruscos, gregos e romanos. O grande líder religioso iraniano Zaratustra (século VI aC) usa o medo do inferno para conseguir que o povo siga suas orientações. Jesus é diferente, não insiste de forma nenhuma no inferno e não usa o método de amedrontar as pessoas para conseguir espalhar seu evangelho. Pelo contrário, fala sempre em perdão e reconciliação, não em condenação. Mesmo assim, os seus seguidores desde cedo lançam mão do mito do inferno e do medo causado por ele para difundir a nova doutrina. Podemos até dizer que no cristianismo dos três primeiros séculos o inferno chega a um apogeu. O inferno cristão é o mais durável, o mais completo e o mais terrível dos imaginários infernais. Na Idade Média, os pregadores populares alimentam no seio do povo um verdadeiro delírio infernal com suplícios macabros dos quais Dante fornece a mais ilustre visão. O inferno torna-se a principal arma na boca dos pregadores, diante dos que ousam duvidar ou abandonar o rebanho. Criticado pelos filósofos das Luzes, o inferno volta com certa força nos séculos XIX e XX antes de ser abandonado pela igreja após o Vaticano II. Quem garante que não volta?

Quanto ao diabo, o termo latino diabolus deriva-se do grego diabolos, um adjetivo que significa mentiroso, insidioso. O termo é usado na antiga tradução grega da bíblia, a Septuaginta, para traduzir o termo hebraico ha-satan (satanás), um membro da corte divina, um espião de Deus para informá-lo sobre procedimentos humanos nas suas viagens pela terra. O termo provém provavelmente de funcionários de serviços secretos de reinos orientais. É inimigo dos seres humanos e provoca conflitos entre os homens. Há muita especulação em saber como o Satanás tornou-se inimigo de Deus e chefe de um reino de espíritos maliciosos.

Na tradição judaica e no pensamento cristão das origens, Satanás vira um nome próprio, inimigo ao mesmo tempo dos homens e de Deus. Há pois dois reinos em conflito: o reino de Deus contra o reino de Satanás. Diz-se que o pensamento religioso persa (proveniente de Zaratustra) tem muito a ver com essa visão dualista para se explicar o mal e a complexidade do ser humano. Mas o cristianismo nunca aceitou um dualismo definitivo: no final Deus triunfa. O que persiste, e constitui pregação durante muitos séculos, é a idéia de que o ser humano é sujeito a forças maléficas. O homem pode ser ‘possuído’ por um demônio, um espírito mau. Nessa constelação de mitos e idéias, Cristo vem para livrar os homens do domínio do mal, da ‘possessão’ maldosa, e a crucifixão, obra de Satanás, significa paradoxalmente a derrota definitiva de Satanás e seus demônios. O reino de Satanás, doravante, é substituído pelo reino de Cristo.


 

FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO 47 -

A TENACIDADE DE BACUS E VÊNUS

AGOSTO - 2001


Apesar de todas essas investidas por parte do clero (veja n. 45 e 46), os antigos mitos de Baco e Vênus, símbolos da vitalidade, da liberdade e do prazer, resistem com tenacidade. São imagens fortes: representam a sexualidade e o prazer, pulsões fundamentais da vida que ao longo da história humana recebem uma espetacular consagração popular, exatamente por corresponderem a pulsões absolutamente necessárias à vida : saúde, alimento, habitação, carinho, ternura, sexualidade. Baco, Dionísio no panteão grego, é um deus feliz. Ele lembra os bons momentos da vida, os banquetes regados de vinho, as boas recordações com amigos e parentes. Sua imagem encontra-se com freqüência nos sarcófagos que os romanos mandam esculpir para se lembrar dos defuntos nos seus melhores momentos, para consolo dos parentes e amigos. Vênus, Afrodite no panteão grego, tem seu nome derivado de "afros" (espuma), a "espuma cálida que banha as praias do amor". Toda a sexualidade, para os antigos, era concebida em termos de calor e frio. O sêmen é a espuma de uma caldeira humana, assim como a vagina fica "animada".

As imagens de Baco e Vênus inserem-se no lindo sonho de humanidade que ainda pode sentir-se no que sobrou das esculturas gregas. Essas obras de arte testemunham um excepcional senso de equilíbrio, racionalidade e sentimento, pressupõem uma visão igualmente elevada do homem e de suas capacidades. Costumam apresentar um rosto sereno, direto, não afetado, que emociona por seu senso de humanidade. Na arte grega e através da imagem dos deuses o homem se apresenta como ele é, em toda a sua nudez e beleza, com uma tranqüila capacidade de domínio sobre o mundo que o rodeia. Essa arte aceita o homem tal qual ele é, nenhuma restrição de ordem moral vem encobrir essas imagens. Esses rostos nos encaram com uma franqueza que nos desafia na sua sinceridade desnuda de farisaísmos e falsos pudores.

O afastamento de Baco e Vênus e a concomitante introdução do conceito da concupiscência da carne nunca foi tranqüilo na história do cristianismo. Os casais cristãos continuavam em crer nos seus médicos que aconselhavam o calor benéfico na hora do encontro conjugal. Eles decerto evitavam o ato conjugal nos dias proibidos pela Igreja, como os domingos, as vigílias das grandes festas, a quaresma, sobretudo por temerem os efeitos genéticos de tais infrações. Mas aos poucos o clero foi ganhando e conseguiu deixar a impressão de que algo de indecoroso pairava sobre o ato sexual, e daí sobre o amor conjugal.

Há um interessante sinal de sobrevivência da amorosidade cultural no termo com que nossas línguas ainda hoje designam o quinto dia da semana. O Friday dos ingleses provém da junção entre o termo Frigg, a deusa nórdica do amor, e o antigo inglês daeg, dia. O dia era dedicado a Vênus pelos romanos: Dies Veneris (dia de Vênus, vendredi em francês, venerdì no italiano, viernes em castelhano). Os alemães falam em Freitag, uma variação do antigo alemão frìatag (dia de Frigg). O nome hebraico yom shishi, significa o sexto dia, e assim ficou em português. Os povos eslavos contam o quinto dia, como é evidenciado pelo nome russo pyatneetza, ‘quinto dia’. Sexta-feira é o sábado muçulmano, escolhido pelo profeta em comemoração da criação do homem no sexto dia e para diferenciar sua religião do cristianismo e do judaísmo.

Para concluir: Baco e Vênus, banidos do cenário litúrgico, freqüentemente voltam, mas então de forma desordenada, convulsiva. A antiga serenidade sexual dos gregos nunca mais se recuperou. Hoje vivemos um tempo de recuperação desordenada, convulsiva e repulsiva da sexualidade, reação contra essa longa história de dois mil anos de repressão sexual praticada pelos pregadores cristãos sobretudo, nos sermões, nas imagens, nas evocações do inferno, nas condenações eternas.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO 48 -

O IMPÉRIO PLATÔNICO

SETEMBRO/OUTUBRO - 2001


Uma filosofia que impressiona vivamente os pensadores cristãos dos primeiros séculos e vem reforçar a política anti-sexual da igreja cristã é o neo-platonismo. O termo abrange uma multiplicidade heterogênea de filosofias e religiões, todas inspiradas nas idéias do filósofo grego Platão. A cidade onde se faz o caldeamento dessas idéias é Alexandria, no Egito, a segunda cidade do império romano.

No ano 244 dC aparece em Roma o filósofo alexandrino Plotino (203-269), forma sua escola e aí alcança em poucos anos um renome extraordinário. Plotino sabe captar admiravelmente a solidão dos indivíduos nas grandes cidades do império romano. Ao sentimento de vazio, a filosofia de Plotino corresponde com uma arte de vida que ensina o amor pelas realidades espirituais, a purificação do amor, partindo do que é material para o que é espiritual. O sucesso dessa filosofia, na realidade uma arte de viver, é tão intenso que ela passa para o cristianismo.

O neo-platonismo cristão é caracterizado por uma oposição categórica entre o espiritual e o carnal, e pela aversão frente ao mundo dos sentidos, os cinco sentidos que nos colocam em relação com o mundo. Só através de uma rigorosa ascese a pessoa consegue libertar-se da matéria. Essa doutrina tem um impacto forte sobre os primeiros grandes intelectuais cristãos. Santo Agostinho abre, por muitos séculos, as portas das igrejas para a doutrina neo-platônica que se infiltra nos sermões, na catequese, na doutrinação do povo.

No neo-platonismo, tempo e história perdem seu sentido. O cristão neo-platônico não pensa em política nem em economia, nem nas questões sociais, para ele o drama real se processa entre a alma e Deus. Os impulsos do corpo devem ser controlados e possivelmente eliminados, a finalidade consiste em se conseguir a êxtase, através da contemplação e da meditação (os exercícios espirituais). O neo-platonismo, em que pese seu caráter de especulação racional, está impregnado de um senso religioso agudo e tem a vantagem de partir de uma concepção muito afim ao monoteísmo cristão. Mas do outro lado, nele não há espaço para a poesia, se por poesia entendemos um fazer do corpo. Tudo emana da razão e da vontade, não dos impulsos "poéticos" do corpo. O corpo deve ser mortificado.

O império neo-platônico sobre o cristianismo está ruindo aos poucos, aqui no Brasil, por exemplo, com a virada da questão social desde os anos 1950, quando os leigos da Ação Católica começam a preocupar-se com as situações de abandono completo em que vive a maioria da população. A teologia da libertação contesta as bases teóricas do neo-platonismo.


FORMAÇÃO DO CRISTIANISMO 49

A DESMORALIZAÇÃO DO LEIGO

NOVEMBRO/DEZEMBRO - 2001


Desde o momento em que reina, no universo cristão, um sentimento vago e mal definido que aponta o pecado original como sendo de ordem sexual, o leigo fica desmoralizado diante da hierarquia. É como se o homem estivesse atingido por uma fraqueza universal e herdasse de Adão e Eva uma natureza sexual decaída. Todos são pecadores. Um Manual antigo de Confessores o explicita: " De todos os combates do cristão, o maior é aquele que se trava a favor da castidade". A continência é a grande guerra, na qual o leigo passa a ser a parte mais fraca, pois "cede" à "tentação da carne". O clero sai forte na medida em que "é resistente à tentação". A repercussão política desse modo de diminuir ou pelo menos lançar suspeitas sobre o ato conjugal é clara. Resulta na predominância de novos "conselheiros", não mais os filósofos ou médicos, mas sim os padres. Eles são os confessores, moralistas e pregadores. O laicato fica num segundo plano.

Já no século IV há documentos que mostram que certas mães cristãs criam seus filhos como pequenos monges, a serem "crianças santas" longe das tentações do mundo. Pior quando a vocação frustrada da mãe se projeta no filho. Aparecem os santos precoces, com sete anos de vida. Já como recém-nascido não querem amamentar na sexta-feira, em memória da morte de Jesus etc. Surge com linhas sempre mais claras a opção pelo celibato. A criança é colocada diante da escolha, desde cedo: casar ou ficar celibatária. Nesse contexto não se assume com seriedade uma educação da sexualidade. Não se pensa em "formação do casal", mas sim em formação para a vida celibatária. Desde que se respeitem as normas tradicionais de moderação social, o casamento passa sem comentários. O casal não é protótipo de santidade, mas sim o celibatário.

A igreja sempre defende o casamento, mas ao mesmo tempo manifesta sua predileção pela mulher celibatária. As exortações quase sempre são dirigidas às jovens não casadas, afastando-as do casamento. Poucas lições são dadas às que se preparam para gerar e educar filhos, lidar com marido, etc. Dentro dessa cultura, o celibato torna-se para certas mulheres um caminho efetivo para a independência e o resgate de sua dignidade, para o rompimento de um férreo sistema de subordinação da mulher diante do homem. Pois os grandes Padres da Igreja são, via de regra, terrivelmente anti-feministas, como Tertuliano, e mais tarde Jerônimo, Ambrósio, Agostinho. Eles, no fundo, repetem o que os intelectuais romanos já disseram: "A mulher é uma criança grande da qual se deve cuidar por causa do dote e do nobre pai". "O marido é o senhor da esposa, dono dos filhos e dos domésticos". Um marido bem definido não pode, de forma nenhuma, dar a impressão de ouvir a mulher ou, pior, agir como uma mulher. Os homens tremem ante a iminência de serem considerados "efeminados". Neles tudo é consciente ou inconscientemente controlado: o andar, a voz, o olhar. Sempre e em toda parte, o homem tem que aparentar ser "senhor imperturbável de um mundo subjugado", uma tarefa muito difícil para muitos.

Mas nos Padres da Igreja a idéia de "casal" ao rigor não existe. A palavra bíblica "Os dois serão uma só carne" provém de um horizonte cultural diferente do mundo tradicional católico. O casal não aparece como tal nos livros de formação cristã, ele só é mencionado em termos de contrato com deveres comuns como sejam: educar os filhos, cuidar da casa, entender-se. O essencial da idéia tradicional católica sobre o casal é a da indissolubilidade, a estabilidade. Se o homem e a mulher conseguirem harmonia, tanto melhor, mas não é o essencial. O essencial mesmo é o contrato diante da sociedade.


EM BUSCA DOS MOVIMENTOS DE JESUS - I - SABER LER

JANEIRO/FEVEREIRO - 2002


Prezados leitores, queridas amigas do IGREJA NOVA:

Já faz um bocado de anos que lhes estou enviando pequenos textos em torno das origens do cristianismo. Entretempo fiz novas pesquisas e vou dando aqui o que encontrei recentemente, sob um novo título: EM BUSCA DO MOVIMENTO DE JESUS. A intenção é cavar mais fundo na história, para além da formação da igreja, tentar chegar ao movimento de Jesus tal qual Ele mesmo o idealizou. Estou sempre agradecido a quem enriquecer esse trabalho por comentários, críticas ou complementações. O autor.

Aprendi com Paulo Freire que é preciso saber ler. Não basta apenas abrir o livro, faz-se necessário entrar em diálogo com o autor que usa as letras para entrar em contato com o leitor. A relação entre autor e leitor, para ser satisfatória, tem que permanecer dialogal ou, se queira, democrática. Do mestre que sabe ao aluno que não sabe passam informações técnicas, não lições de vida. Pois na arte da vida nunca somos alunos, sempre temos uma experiência já adquirida e integrada na nossa personalidade. Quem quiser aprender algo na arte da vida através da leitura precisa pois entrar em diálogo com o autor das letras que está lendo. Porém, nem toda literatura é redigida de forma dialogal. No Pentateuco, por exemplo, ou seja, na coleção dos cinco primeiros rolos bíblicos, podemos verificar diversas ‘costuras’, momentos em que as narrativas sobre patriarcas e libertadores são abruptamente interrompidas para ceder lugar a longas determinações legais e litúrgicas. O que acontece? A resposta está no estudo da maneira em que a bíblia é redigida enquanto bloco literário unificado. Desde muitos séculos, os peregrinos hebreus que visitam os santuários dedicados aos patriarcas em Canaã contam entre si histórias sobre Abraão, Isaac, Jacó (Israel), José, e também sobre a fuga do Egito, sobre Moisés e Josué. Ambos os blocos narrativos, tanto o patriarcal como o do êxodo, passam de boca em boca durante gerações. Aqui temos pois uma literatura dialogal. Mas num período particularmente difícil na história dos hebreus, durante os séculos da dominação persa (séculos VI a IV aC), quando os povos da Palestina correm o perigo de perder sua identidade no meio de tantos outros grupos étnicos existentes dentro do vasto império, os intelectuais ligados ao templo reconstruído de Jerusalém percebem a relevância dessas narrativas populares no sentido de se dar aos grupos aí habitantes, divididos entre si, uma coesão nacional e subsequente auto-estima e combatividade. Assim realizam a façanha de se formar um povo através das letras. Mas não só através das letras, também através do templo. E aí está o nó da questão. Os sacerdotes do templo defendem, é como entre todos os sacerdócios e em todos os templos, interesses corporativos e assim introduzem textos de caráter litúrgico, legislativo e autoritário no meio dos textos tradicionais de caráter dialogal (narrativo, poético, sapiencial). O leitor atento ainda pode detectar hoje essa alternância no Pentateuco. O fenômeno não se verifica só em relação à bíblia. Os Vedas do hinduísmo contêm poesias e fórmulas cerimoniais, o Avesta do zoroastrismo é ao mesmo tempo um manual de orações litúrgicas e uma coletânea de textos poéticos, os 114 suras do Alcorão islâmico contêm ao mesmo tempo músicas, poesias e códigos de ordem social, política, legal e até militar, enquanto as Analetas compiladas a partir dos ensinamentos de Confúcio contêm igualmente narrativas e leis. É um fato que a literatura autoritária leva facilmente à leitura fundamentalista, enquanto a literatura dialogal apela para a capacidade, por parte do leitor, de estabelecer uma relação de relacionalidade livre e autônoma com o escritor das letras.


EM BUSCA DOS MOVIMENTOS DE JESUS - II

LER CRITICAMENTE

MARÇO/ABRIL - 2002


É preciso abandonar a ilusão de que estejamos lendo a Bíblia num ambiente de perfeita liberdade. Normalmente olhamos, lemos ou ouvimos através das lentes ou dos ouvidos de alguém que está escrevendo ou ditando as normas, embora discretamente oculto atrás de cortinas. Não existe leitura sem censura. Digo mais: está emergindo, no mundo inteiro, uma nova forma de censura, a censura econômica. Como atualmente também a informação vira mercadoria sempre mais submetida a campanhas publicitárias, as informações que não conduzem ao lucro são reprimidas ou mesmo silenciadas e perseguidas. Daí segue-se uma perigosa auto-censura. As pessoas têm medo de enfrentar o imperialismo da mídia. É mais fácil seguir o que algumas mega-empresas poderosas ditam do que usar a cabeça. As pessoas têm medo de ficarem no isolamento, perda de emprego, perda de aceitação social. Hoje as pessoas críticas são mal vistas, pois atrapalham o jogo das grandes empresas de informação. Reina nos dias de hoje uma grande passividade, no mundo inteiro, mesmo em relação à Bíblia e à figura de Jesus. Só passa o que é economicamente viável.

O que nos resta numa situação como esta? A Inteligência. O cristianismo sempre venceu quando apelou para a inteligência, sempre retrocedeu quando deixou de apelar para ela. Nas suas origens venceu porque inteligentemente propôs a formação de redes de serviços sociais, criou estruturas de amparo social numa sociedade que não cultivava a sensibilidade social. Os cristãos de hoje podem desempenhar um papel parecido, caso abandonem a estúpida corrida atrás do marketing, da TV e da concorrência publicitária e cultivem o conhecimento mais profundo de sua própria religião, se capacitem a participar de um debate sobre suas próprias origens. Pois durante esses dois mil anos de história, o cristianismo afastou-se muito de suas origens e muitos hoje nem conhecem as inspirações das origens. É urgente que os leigos saiam de sua postura de passividade em relação ao conhecimento da religião que professam e acompanhem os avanços da ciência. Pois o futuro da humanidade hoje depende em grande parte da capacidade de se discutir democraticamente os temas que interessam à vida em sociedade, inclusive a religião. A atualidade demonstra a grande importância da religião. Mas hoje as religiões chocam-se entre si como nunca antes, pois não conhecem suas próprias raízes. Nem os cristãos, nem os islamitas. Precisa-se pois cultivar a inteligência, a maior potencialidade humana, capaz de nos fazer sair do impasse em que estamos. Estou convencido que o cultivo da inteligência se tornará a marca dos cristãos nestes tempos de escravidão exercida pela mídia através de uma propaganda sempre mais penetrante e agressiva. Diante da mídia todo-poderosa só temos uma arma eficiente: a nossa inteligência. Está na hora de se despertar a inteligência das pessoas, fazer com que deixem a sonolenta e perigosa conformidade que é o combustível da guerra, da morte e do domínio de alguns poucos sobre o mundo. Eis uma tarefa prioritária para os cristãos leigos hoje.


EM BUSCA DOS MOVIMENTOS DE JESUS - III

Ousar tocar nos textos

MAIO - 2002


A BÍBLIA

O texto bíblico permanece intocável durante muitos séculos. A igreja vigia a bíblia com seu principal tesouro, base de sua autoridade, enquanto insiste no sentido moral e espiritual do texto, deixando outros aspectos de lado. Mas sempre surge a suspeita: será que a bíblia é um texto diretamente inspirado por Deus ou redigido por homens e mulheres ao longo dos tempos? O primeiro a tocar com autoridade no assunto é o filósofo judeu Spinoza, que no seu Tractatus theologico-politicus de 1670 afirma que não consegue detectar nada de propriamente histórico no Pentateuco, por sinal atribuído a Moisés. Ele conclui que Esdras redigiu essa coleção após o retorno das elites judaicas do exílio babilônico no século V aC, portanto sete séculos após a morte de Moisés. O espanto é geral, sobretudo nos ambientes eclesiais, mas, de qualquer modo, com Spinoza nasce a exegese crítica, que atravessa séculos de luta antes de firmar-se com autoridade no século XX. A força dos exegetas reside no seu conhecimento das línguas em que a bíblia é transmitida: o hebraico, o grego, o latim. Graças à progressiva introdução da idéia de tolerância em países como a França e a Alemanha no decorrer do século XVIII, os estudos conseguem sobreviver. Voltaire e outros lutam para que ninguém seja mais queimado vivo por emitir opiniões contrárias às autoridades. Essa idéia triunfa com a revolução francesa de 1789.

ORIGENS DOS TEXTOS

Moisés destronado como autor, resta descobrir as origens dos textos através de uma leitura crítica. No século XIX a arqueologia vem oportunamente socorrer os estudos literários. Num empolgamento geral nasce a egipciologia, a assiriologia, a epigrafia semita, etc. E no século XX os progressos também são grandes, tanto nos estudos dos textos como na arqueologia. Mas os problemas entre a leitura ‘crente’ e a leitura ‘científica’ permanecem até nossos dias. Muitos ainda não ousam tocar nos textos.

Hoje pode-se verificar nitidamente como estão as coisas quando se compara o conteúdo das aulas de religião em diversos países. Na maioria dos países católicos, essas aulas ainda seguem os ditames anteriores ao século XVII e se limitam a detectar o sentido moral e doutrinário dos textos bíblicos. Mas em países como a Alemanha por exemplo, os cursos de religião já são cursos de cultura religiosa. Aí a bíblia é estudada cientificamente, o que abre perspectivas novas. A história dos hebreus não é mais contada como se fosse uma história sagrada fora do tempo, mas em relação com a documentação histórica que possuímos, não só acerca dos impérios egípcio, babilônico e persa que dominaram Israel durante a história, mas também acerca dos pequenos reinos vizinhos a Canaã. Relacionam-se os mundos hebraico, aramaico e helenista, estuda-se o judaísmo antigo, o Egito dos Faraós, a Mesopotâmia desde os sumérios até os grandes impérios, a helenização a partir de Alexandre Magno. O estudante consegue contemplar um horizonte bem mais largo e tem por conseguinte mais facilidade de situar a bíblia dentro da atual globalização das culturas e das histórias.


EM BUSCA DOS MOVIMENTOS DE JESUS - IV

A leitura fundamentalista

JUNHO-JULHO - 2002


Existem duas maneiras básicas de leitura de qualquer texto que seja, a dialogal e a autoritária. A leitura fundamentalista da bíblia é autoritária pois considera a bíblia como depósito de uma doutrina intocável e de uma liturgia perene. O leitor fundamentalista recusa o diálogo, seja com o autor do texto seja com outro leitor. Ele não entra em diálogo, mas mantém uma postura de adoração perpétua diante de textos considerados eternos, oráculos imutáveis de um Deus imutável. Penso que é preciso romper com isso e encarar a bíblia como uma inspiração no sentido de se viver melhor. Mesmo conservando apenas a memória de um povo determinado, o povo judeu, a bíblia hoje tem um alcance universal, é o livro mais divulgado que existe. Com a supremacia da cultura ocidental sobre o mundo e a atual globalização, a bíblia reveste uma importância grande para todos os habitantes da terra. Hoje o mundo inteiro já sabe algo, mesmo se apenas vagamente, acerca de Abraão o pai da fé, Isaac o filho do riso, Jacó o lutador com Deus, José o mediador, Davi o vencedor de Golias, Salomão o rei sábio, Josué o general, Elias o destemido, Daniel o visionário, Esdras o restaurador do templo, Ezequiel o combatente, Isaías o poeta de alta qualidade, Jeremias o anunciador de calamidades, Neemias o governador, Samuel o profeta e sacerdote, Sansão o forte, Judite a esperta, Jonas o covarde, Jó o questionador, Rute a fiel, Tobias o cuidadoso, Ester a corajosa, Jesus o salvador. O que essas mulheres e esses homens realizaram nas suas vidas constitui uma sugestão virtual para todos, hoje.

Como se propaga a leitura fundamentalista? É preciso dizer, em toda honestidade, que são sobretudo as igrejas que costumam usar a leitura fundamentalista. Elas a usam para firmar sua autoridade, o que muitos crentes das igrejas mal compreendem. Nas mãos das igrejas, a bíblia vira uma bandeira de guerra contra os inimigos da fé. É o próprio medo da igreja que cria esses inimigos, pois ela tem medo de perder o papel que exerce dentro da sociedade. Assim origina-se um círculo vicioso. Os adeptos mais fervorosos das igrejas, formados por uma leitura fundamentalista, estão, o mais das vezes sem o saber, engajados numa guerra. Eles seqüestram freqüentemente as figuras bíblicas e a história do povo de Israel em benefício de suas igrejas, transformam os patriarcas hebreus e o próprio Jesus em grandes heróis fora da história, figuras inquestionáveis fora da vida. Trata-se de um seqüestro tanto mais definitivo quanto menos conscientizado.

Nestas condições, a única saída está na inteligência (como já disse anteriormente). Ela entende que os textos bíblicos se originaram na ânsia de se preservar uma memória considerada importante. Compreende-se que, ao longo dos tempos, o mesmo texto tenha correspondido a anseios de sucessivas comunidades de ouvintes, até os dias de hoje. Por conseguinte, a inteligência procura na bíblia uma sintonia com o que vivemos hoje, nossos gostos e anseios, nossas esperanças. Daí a postura dialogal. Os leigos terão que lutar a favor de uma leitura livre, autônoma e dialogal dos textos bíblicos.


Em Busca dos Movimentos de Jesus -

V -A LEITURA ERÓTICA

AGOSTO - 2002


LEITURA ERÓTICA

Em oposição à leitura fundamentalista da bíblia proponho que se pratique uma leitura erótica. Mas não será um absurdo falar em erotismo ao se tratar da bíblia? Os profetas não se pronunciam contra os pecados da carne? Os salmos não rezam que fomos concebidos no pecado? Os padres da igreja não recomendam a mortificação? Santo Agostinho não diz que somos todos afetados pelo pecado original? Bem, diante de tantas referências autorizadas tenho que me explicar. Por ‘leitura erótica’ entendo leitura a partir do Eros tal qual aparece na antiga mitologia grega.

MITOLOGIA GREGA

Ele é o último filho de Caos, o abismo silencioso e escuro donde tudo provém. Esse Caos gera o pai-céu Uranos, a mãe-terra Gaia, o Tártaro dos abismos e o Eros destinado a viver sobre a terra. Eros é por conseguinte símbolo da vida. Ela nasce na indigência e vence lutando pela sobrevivência. Chega a ser o filho predileto de Caos, pois incorpora a harmonia e o poder criativo do universo. É inimigo declarado de Tánatos, o poder da morte. Depois, na evolução da mitologia, essa primordial imagem é influenciada pela ulterior literatura grega, onde aparece como um jovem que sofre ao mesmo tempo o Pathos (desejo) e o Himeros (a ilusão). É pois o apaixonado iludido. A paixão é uma perigosa ilusão. Quando, mais tarde ainda, Eros vai associado a Afrodite sua mãe, deusa do amor, completa-se a imagem de que o amor e sobretudo a paixão pela vida seja algo perigoso, ao mesmo tempo atrativo e enganoso. Ao propor aqui uma leitura erótica da bíblia, refiro-me pois ao sentido original de Eros, o poder da vida (do gozo, do prazer, do dinamismo) em oposição aos poderes da morte e da violência, na linha de livros como Eros e Civilização (1955) de Herbert Marcuse.

SENTIDO REAL

O sentido primitivo de Eros está cheio de alusões fecundas à situação que vivemos hoje no cenário mundial. Estamos vivendo uma época de renovados sentimentos de guerra. O império americano, ferido no seu orgulho, se militariza cada vez mais e dispensa a ajuda de outros países: é capaz de destruir sozinho qualquer inimigo no planeta, sem ajuda de ninguém. Numa situação como esta, alguns opinam que a única saída seja o terrorismo, outros ainda o conformismo ou a aliança com o mais forte. É aí que se situa a antiga imagem grega de Eros inimigo de Tánatos (morte). É preciso escolher entre Eros e Tánatos. Não há meio-termo, pois os aliados de Tánatos colaboram com ele. Só através de um cultivo consciente de Eros, o cristianismo será capaz de ser fermento nas sociedades de hoje. Para tanto, impõe-se uma nova leitura da bíblia a varrer os malentendidos seculares sobre mortificação e repressão da sexualidade, aversão ao mundo, obediência cega e seguimento cego das autoridades. Como território dialogal e autônomo, a bíblia está aberta a uma leitura a partir da dinâmica sadia da vida. Eis o desafio que proponho; analisemos juntos nos próximos artigos.


Em Busca dos Movimentos de Jesus VI -

A leitura apócrifa

setembro/outubro -2002


Meus amigos, minhas amigas: já são cinco artigos que lhes enviei acerca da busca do movimento de Jesus através da leitura. Pois é pela leitura que chegamos a Jesus, não há outro jeito. Já refletimos juntos sobre diversas condições de uma boa leitura, como sejam, que é preciso ‘saber ler’, ‘ler criticamente’, ‘ousar tocar nos textos’, evitar a ‘leitura fundamentalista’ e não ter medo de uma leitura eventualmente ‘erótica’. Tudo isso nos cinco artigos anteriores. Agora proponho que avancemos e conversemos ao longo de alguns artigos sobre o que chamo de ‘leitura apócrifa’, ou seja, não assimilada formalmente na ortodoxia das igrejas. Face a face com o texto, sem pedir permissão ao vigário. Certo? Vocês sabem que há uma enorme literatura apócrifa acerca de Jesus, Maria, José, os apóstolos. Nela estão escritos textos interessantes para nossa vida cristã de casados, pais ou mães de família, empregados ou desempregados, profissionais e lutadores (as) pelo pão de cada dia.

A literatura apócrifa é compreensível ao cristão não formado em teologia, eis seu grande valor. Já no século II verifico como mestres e apologetas gostam de esgrimir entre si, falando uma linguagem enigmática e inacessível ao pessoal das comunidades. Enquanto ficam discutindo, as pessoas lá fora continuam a casar-se, a ter filhos e a trabalhar para sustentar a família. Essas pessoas excluídas das conversas eruditas sabem muito bem que Maria também casou, teve seu filho Jesus e que José deu duro para sustentar a família. Que Pedro e Paulo fizeram grandes coisas pela fé. Essa gente olha com respeito para essas grandes figuras. Seria possível imitar tão sublimes exemplos? Assim passam de boca em boca lindas histórias sobre a infância de Jesus, o nascimento e a educação de Maria, a vida de José carpinteiro, as milagrosas viagens de São Pedro e São Paulo, as histórias de Nicodemos e Pilatos, as andanças de Maria Madalena e Santa Tecla. Os intelectuais da igreja não se sentem à vontade diante desses textos simples que começam a circular e os acham indignos de entrar no rol dos livros sagrados. Proíbem sua leitura, de sorte que as pessoas os escondem e copiam às escondidas. Assim se formam os textos "apócrifos" (apokrufein em grego: esconder). O povo cultiva esses textos com carinho, e assim fazem ao longo dos séculos os artistas, os músicos, os sonhadores, os poetas, sensíveis como são à vida que pulsa nesses textos rejeitados pela igreja oficial. As pinacotecas, os catálogos de obras poéticas e musicais do mundo inteiro estão repletos de evocações dessa história miúda de Jesus, Maria e José, mais que de trabalhos inspirados no sisudo cristianismo dogmático que a igreja produz. A literatura apócrifa que consegue escapar à fúria anti-herética que afeta a igreja durante séculos, contém evangelhos, atos de apóstolos, cartas, apocalipses. Há textos apócrifos que influenciaram os evangelhos canônicos. Assim o Proto-evangelho de Tiago está na origem do evangelho do nascimento e da infância de Jesus, em Lucas e Mateus. Certas histórias circulam oralmente entre os cristãos durante muito tempo, como o nascimento de Maria, sua educação no templo, a escolha de José como companheiro, o nascimento de Jesus num presépio, os magos do Oriente, a estrela, a fuga para o Egito, antes de serem registradas por escrito.


Em Busca dos Movimentos de Jesus VII-

A leitura apócrifa II (*)

Janeiro/Fevereiro - 2003


EDUARDO HOORNAERT

Um texto apócrifo interessante é A Infância de Jesus por Tomé, escrito no século II, provavelmente de origem síria. Existem versões antigas em grego, siríaco, latim, o que prova que essa história foi muito lida e divulgada, durante séculos. Corresponde ao que circula nas comunidades sobre a infância de Jesus, período obscuro de sua vida e conta os prodígios operados pelo menino entre cinco e doze anos. Ele brinca com passarinhos que lhe obedecem; causa cegueira nos que o ofendem; mata ‘sem querer’ (nem saber) os que o batem, pela simples força de sua presença; estuda com o professor Zaqueu (sabe mais que o professor); ressuscita um menino; leva água num jarro quebrado; consegue uma colheita excepcional para toda a aldeia; passa a estudar com dois outros professores que tão pouco conseguem ensinar algo; cura o irmão Tiago mordido por uma cobra; ressuscita várias pessoas; e, finalmente, no auge dos prodígios, vai a Jerusalém aprender com os doutores, e acontece o incrível: ensina aos doutores da lei. Um menino de Nazaré ensinando aos doutores de Jerusalém! É o máximo! Aqui temos, pois, o Jesus brincalhão e alegre do evangelho de Lucas 7, 34: Veio o Filho do Homem, que come e bebe, em contraste com João Batista que nem come nem bebe, o profeta alegre que gosta da vida e anima a liberdade, que se relaciona bem com as pessoas, não um profeta solitário. Um Jesus em comunidade, em família, brincando com seu primo João Batista, na pura inocência de criança, rindo em Caná, onde transforma água em vinho numa festa de casamento, conversando animadamente com Nicodemos, com a samaritana, com Maria, com Lázaro, comendo e bebendo com camponeses em torno da tosca mesa, nos sítios da Galiléia.

Os temas tratados em A Infância de Jesus por Tomé ficam preservados através dos séculos por meio da arte, não por meio da pregação oficial. Divulga-se por meio de calendários, martirológios, livros memoriais, horas canônicas, pinturas, hinos, danças. Tudo em contraposição com a enfadonha e seca doutrina. Através da leitura apócrifa vamos aprendendo que Jesus não é nenhum filósofo formado nas academias. Participa da vida da aldeia, fica indignado com o abandono dos camponeses da Galiléia. Seu seguimento resulta em animado compromisso com os rejeitados da terra, escravos, donas de casa, crianças pelo mundo afora. A simples história de Jesus brincalhão mostra que o Deus dos cristãos não gosta de templos, nem ritos, nem cerimônias. É o mesmo Deus de Israel: Eu odeio, eu desprezo essas festas e não gosto dessas cerimônias. Não me agradam suas oferendas, e não olho para o sacrifício de seus animais cevados. Afasta de mim o ruído de seus cantos, não suporto o som de suas harpas (Amós 5, 21-23). Eu estou farto de holocaustos de carneiros e da gordura de bezerros cevados. Não sinto prazer no sangue de touros, cordeiros ou bodes... Suas oferendas são para mim um incenso abominável (Is 1, 11-15). Quem quer pesquisar mais, veja Os 8, 13; Jer 7, 1 seguintes; 26, 6; Mq 3, 12; Ap 21, 22). Jesus sobrevive na tradição anti-templária de Israel e apócrifa da igreja cristã. Aí convive com Maria Madalena, apóstola apócrifa, escondida nas pregações oficiais ou reduzida a uma mulher prostituta, por vergonha do papa Gregório Magno, o primeiro que fez um sermão fazendo de Maria Madalena uma prostituta.

 


Em Busca dos Movimentos de Jesus VIII -

A leitura apócrifa III

Novembro/Dezembro - 2003


EDUARDO HOORNAERT

Meus amigos, minhas amigas: já são cinco artigos que lhes enviei acerca da busca do movimento de Jesus através da leitura. Pois é pela leitura que chegamos a Jesus, não há outro jeito. Já refletimos juntos sobre diversas condições de uma boa leitura, como sejam, que é preciso ‘saber ler’, ‘ler criticamente’, ‘ousar tocar nos textos’, evitar a ‘leitura fundamentalista’ e não ter medo de uma leitura eventualmente ‘erótica’. Tudo isso nos cinco artigos anteriores. Agora proponho que avancemos e conversemos ao longo de alguns artigos sobre o que chamo de ‘leitura apócrifa’, ou seja, não assimilada formalmente na ortodoxia das igrejas. Face a face com o texto, sem pedir permissão ao vigário. Certo? Vocês sabem que há uma enorme literatura apócrifa acerca de Jesus, Maria, José, os apóstolos. Nela estão escritos textos interessantes para nossa vida cristã de casados, pais ou mães de família, empregados ou desempregados, profissionais e lutadores (as) pelo pão de cada dia.

A literatura apócrifa é compreensível ao cristão não formado em teologia, eis seu grande valor. Já no século II verifico como mestres e apologetas gostam de esgrimir entre si, falando uma linguagem enigmática e inacessível ao pessoal das comunidades. Enquanto ficam discutindo, as pessoas lá fora continuam a casar-se, a ter filhos e a trabalhar para sustentar a família. Essas pessoas excluídas das conversas eruditas sabem muito bem que Maria também casou, teve seu filho Jesus e que José deu duro para sustentar a família. Que Pedro e Paulo fizeram grandes coisas pela fé. Essa gente olha com respeito para essas grandes figuras. Seria possível imitar tão sublimes exemplos? Assim passam de boca em boca lindas histórias sobre a infância de Jesus, o nascimento e a educação de Maria, a vida de José carpinteiro, as milagrosas viagens de São Pedro e São Paulo, as histórias de Nicodemos e Pilatos, as andanças de Maria Madalena e Santa Tecla. Os intelectuais da igreja não se sentem à vontade diante desses textos simples que começam a circular e os acham indignos de entrar no rol dos livros sagrados. Proíbem sua leitura, de sorte que as pessoas os escondem e copiam às escondidas. Assim se formam os textos "apócrifos" (apokrufein em grego: esconder). O povo cultiva esses textos com carinho, e assim fazem ao longo dos séculos os artistas, os músicos, os sonhadores, os poetas, sensíveis como são à vida que pulsa nesses textos rejeitados pela igreja oficial. As pinacotecas, os catálogos de obras poéticas e musicais do mundo inteiro estão repletos de evocações dessa história miúda de Jesus, Maria e José, mais que de trabalhos inspirados no sisudo cristianismo dogmático que a igreja produz. A literatura apócrifa que consegue escapar à fúria anti-herética que afeta a igreja durante séculos, contém evangelhos, atos de apóstolos, cartas, apocalipses. Há textos apócrifos que influenciaram os evangelhos canônicos. Assim o Proto-evangelho de Tiago está na origem do evangelho do nascimento e da infância de Jesus, em Lucas e Mateus. Certas histórias circulam oralmente entre os cristãos durante muito tempo, como o nascimento de Maria, sua educação no templo, a escolha de José como companheiro, o nascimento de Jesus num presépio, os magos do Oriente, a estrela, a fuga para o Egito, antes de serem registradas por escrito.


Em Busca dos Movimentos de Jesus IX

A leitura apócrifa IV

Março/abril - 2003


Mas também Pedro e Paulo praticam milagres. Quem quiser aprofundar-se nesse tema apócrifo, leia Ramos, L., Fragmentos dos Evangelhos Apócrifos, Vozes, Petrópolis, 1989. Aqui só dou uns toques.

Os Atos de Paulo redigidos na Ásia Menor por volta de 185-195 dC, descrevem as viagens de Paulo com muitas peripécias. Em Éfeso, Paulo é condenado às feras, mas converte e batiza o leão preparado para devorá-lo.

O leão parte em paz, desprezando doravante os apelos das leoas. Ele vira asceta. Essa história, ao que diz a tradição, provocou muitas conversões ao cristianismo. Depois disso, Paulo viaja a Roma e aí é aconselhado pela comunidade a sair da cidade para não ser preso. Ao passar pela porta da cidade, encontra o Senhor que entra: "Para onde você vai? (Quo Vadis?)", pergunta Paulo. Ao que Cristo responde: "Para ser crucificado". Paulo, arrependido, regressa à cidade e é decapitado. Os soldados, em lugar de sangue, são salpicados com leite.

Um caso parecido acontece com o apóstolo Pedro. Os Atos de Pedro escritos entre 180 e 190, contam que ele viaja a Roma para pregar o evangelho. Famoso é o episódio do Foro Romano, quando São Pedro mede forças com Simão o Mago para saber quem consegue fazer coisas mais extraordinárias. Simão quer manter-se voando no céu (ascensão) e morre na tentativa. Pedro é o maior, seu poder ultrapassa o dos magos. Nos mesmos Atos há também um episódio ‘Quo Vadis?’ parecido com o de Paulo. Ele finalmente é crucificado em Roma, por expressa vontade de cabeça para baixo, numa postura de humildade diante de Jesus crucificado.

Esses Atos são importantes para entender-se a formação imaginária do cristianismo. Baseados em "ágrafos", ou seja em ditos não escritos, numa primeira fase passam oralmente de geração em geração. Num segundo momento, são anotados por escrito. São por conseguinte compilações da cultura oral, como se pode perceber pelas freqüentes citações nos Padres da Igreja, que as recolhem por toda parte. Estou aqui diante de um dado importante, que me faz entender a formação do imaginário cristão ao longo do século II. Histórias repetidas de pai para filho, de mãe para filha, e que resultam numa abundância de textos espalhados por todo mundo cristão. Cada comunidade local produz os Atos de um determinado apóstolo, cada igreja declara-se apostólica, o que pressupõe a idéia de que o movimento dos apóstolos não termina com a morte da última testemunha ocular da vida de Jesus, nem se restringe à Galiléia ou Palestina. Os Atos dos Apóstolos estendem-se pelo tempo e pelo espaço em círculos sempre mais amplificados.

Cada aldeia pelo menos conhece um apóstolo na redondeza, um "homem santo" que é o sinal visível de Deus. O apóstolo local faz o que fizeram Pedro e Paulo, expulsa demônios, conversa com anjos, cura e ressuscita, prega a boa nova aos pobres e hostiliza os inimigos da fé.

Certos pesquisadores encontram na literatura milagreira a principal razão da sensacional expansão do cristianismo no decorrer do século II. Efetivamente, há uma abundante literatura na qual Jesus e os apóstolos aparecem antes de tudo como milagreiros. O próprio Paulo escreve que o sucesso de seu trabalho não provém tanto dos seus argumentos bem feitos nem de sua retórica mas sim "dos sinais e milagres" que acompanham sua ação junto ao povo. O Deus dos cristãos mostra-se mais forte do que o Deus dos outros. Assim no caso da "conversão" do pro-consul Sérgio Paulo por Paulo, relatada nos Atos dos Apóstolos de Lucas.

Paulo cega o mago em que confia o pro-consul e com isso prova ser possuidor de maior "dinamismo" divino. Esse impressiona-se e converte-se ao movimento. O poder dos milagres arrasta as pessoas para a fé sem que estas tenham condições de reagir. Milagreiros e exorcistas correspondem a um sentimento religioso vigente em todo o âmbito do império romano. O exorcista fica no centro do processo de expansão do cristianismo, ele desafia e desmoraliza os demônios e demonstra o poder superior do Deus dos cristãos.

Uma palavra sobre outro escrito milagreiro, o Apocalipse de Paulo, que teve enorme sucesso e foi traduzido para o armênio, copta, etíope, grego, latim, eslavo, e siríaco. Resta-nos apenas um resumo em grego do escrito, um desenvolvimento do desabafo do apóstolo em 2 Cor 12, 2-4, quando ele diz que foi elevado ao terceiro céu, e aí ouviu palavras inefáveis que não é lícito ao homem repetir. Paulo recebe a missão de pregar a penitência à humanidade perdida, e nessa missão deixa seu corpo na terra, enquanto a alma é elevada até o terceiro céu, depois o quarto, e finalmente o sétimo. Paulo vê os doze apóstolos à esquerda e à direita de Deus, os exércitos celestes, anjos e demônios, eleitos e condenados. Horroriza-se com as torturas. Os anjos levam Paulo durante sete dias e sete noites por todos os recantos do céu.

O Apocalipse de Paulo mostra certos elementos novelísticos provenientes das culturas mediterrâneas. No final do século II e durante todo o século III está em voga esse gênero literário que cai tanto no gosto das comunidades que as autoridades têm muito trabalho em tirá-lo do circuito. Seu sucesso dura até o século IX. É a novela daqueles tempos, os apóstolos são os protagonistas, principalmente Paulo, Pedro, João. Por onde passam os apóstolos, altares explodem, templos ruem, tempestades rugem.


Em Busca dos Movimentos de Jesus X

Lutar Contra a Mentira

Maio/Junho-03


Uma simples leitura do evangelho de Mateus mostra como o primeiro impacto causado nas pessoas ao aproximar-se de Jesus costuma deixar marcas profundas. Não há como fugir ou esconder-se diante dele. Ao discípulo que quer desculpar-se por abandonar o grupo, alegando que deve prestar as últimas homenagens ao seu pai defunto, Jesus responde abruptamente: Que os mortos honrem seus mortos (Mt, 8, 22). Na extraordinária cena com o Separado que o convida a cear (Lc 7, 36-47), a mentira no comportamento do hospedeiro aparece de forma flagrante. A mulher fora da lei que beija e perfuma os pés de Jesus, ela sim está na verdade. Jesus compraz-se em desmontar as mentiras do Separado. Aliás, sua incompatibilidade com os Separados não tem outro motivo senão a mentira. É verdade que o próprio movimento de Jesus se origina no seio do movimento dos Separados, mas com essa grande diferença: a rejeição pura e simples da mentira, sobretudo da mais sutil e perversa que consiste na auto-enganação. Pois os Separados conseguem enganar-se a si mesmos, convencidos que são de elevar-se acima da humanidade comum por seus jejuns prolongados, as largas filactérias (peças de pergaminho com textos escritos, fixas na testa ou nos braços), a amplidão de suas franjas e da orla de seus vestidos. O que agrada a Jesus é a mulher que tem coragem de lhe tocar as franjas (Mt 9, 20), o centurião romano que lhe pede a cura de um empregado seu (Mt 8, 5-13), os dois cegos que tanto o molestam mas que acabam sendo atendidos (Mt 9, 27-31). Ou seja, agrada-lhe a persistência, a coragem, a confiança, a teimosia em acreditar que as coisas podem mudar, e não o protocolo, a formalidade, enfim, a mentira.

Ele mesmo sabe que sua proposta é extremamente difícil de ser realizada. Em Mc 10, 17-31 há uma interessante troca de idéias sobre sucesso ou insucesso dessa proposta, por ocasião da reação de um jovem rico que não está disposto a largar tudo para seguir a Jesus. Aí Jesus lembra que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino de Deus. Mais e mais desorientados (os discípulos) comentam entre si: Então, quem pode salvar-se? Jesus os contempla: Se depender dos homens, ninguém. Mas isso depende de Deus, e tudo é possível a Deus (v. 25-27). Dada a condição humana, o reino não vem. Jesus é realista e percebe como é difícil reorientar a vida, recomeçar tudo numa base diferente (novos irmãos, irmãs, casas, mães, filhos, campos, tudo, com perseguições por cima: v. 30). Mas em compensação algo absolutamente novo em Jesus é a percepção de que parar de mentir significa em última instância parar de sofrer, ficar sempre feliz. Mas muitos não chegam a tanto e se incomodam com a penetrante análise a que estão submetidos tão logo entram em contato com Jesus.


Em Busca dos Movimentos de Jesus XI

A luta contra a mentira II

Julho/Agosto-03


Os capítulos 5 a 7 do evangelho de Mateus demonstram que, para Jesus, o mundo vive uma comédia geral. As pessoas são comediantes, fingem o que não sentem, vivem presas a mil e uma fivelas que comandam suas reações, como se fossem marionetes. Os Separados por exemplo, acreditam que o mundo está dividido entre puros e impuros, justos e injustos, santos e pecadores. Tudo isso, para Jesus, é pura comédia. Não existe olhar franco nem palavra certa. As pessoas têm medo da liberdade, preferem a máscara da mentira à franqueza do discurso desnudo. Por causa de sua rejeição da ‘comédia humana’, a palavra de Jesus é tão franca e inconveniente, indecente até. O ser humano não se suja pelo que lhe entra na boca mas pelo que dela sai (Mt 15, 11). (Os Separados) são cegos que guiam cegos (Mt 15, 14). Onde está guardada sua fortuna, aí está seu coração (Mt 6, 21).

Por isso mesmo, Jesus está convencido que o mundo nunca vai se remir por meio de uma guerra santa entre o Bem e o Mal, mas por meio da conversão interior na cotidianidade da vida, por meio da passagem sempre retomada da mentira para a verdade. Para Jesus não há Senhor da Guerra a comandar os destinos da humanidade. Ele acredita no ‘Deus das pequenas coisas’. É importante perceber que Jesus não aceita uma visão do mundo baseada na luta entre o bem e o mal. (O Pai) faz com que o sol se levante sobre bons e maus. Ele faz chover tanto sobre os justos como sobre os que zombam da justiça (Mt 5, 45). O Pai fica aborrecido com os ‘acertos de contas’ que os homens costumam fazer. Todos somos igualmente humanos, praticamos o bem e o mal. A solução não consiste num acerto de contas mas na conversão: Não resista ao mal (v. 39), só assim você será sal da terra, luz do mundo (v. 13). Com uma extraordinária lucidez, Jesus percebe que, afinal, Deus não é conhecido. A imensa maioria das pessoas o imaginam como um rei persa, sentado no trono abanado por celestes lacaios, em opulência e com plenos poderes sobre vida e morte. O Deus de mentira habita mentes e corações. Meio desesperado, Jesus ensina aos discípulos como rezar:

Pai nosso que está nos céus

Você é santo

Faça com que todos o conheçam.

Que segundo sua vontade tudo se realize

tanto na terra como no céu (Mt 6, 9-10).

É preciso que Deus-pai seja conhecido. É um engano pensar que o evangelho mantém a imagem de Deus que as pessoas carregam dentro de si. Jesus sabe disso e por conseguinte pede insistentemente que se reze o Pai nosso, uma oração nova, desconhecida na Torá, e onde Deus aparece na sua verdadeira identidade.


Em Busca dos Movimentos de Jesus XII

A luta contra a mentira III

Setembro/Outubro -03


Os capítulos 5 a 7 do evangelho de Mateus demonstram que, para Jesus, o mundo vive uma comédia geral. As pessoas são comediantes, fingem o que não sentem, vivem presas a mil e uma fivelas que comandam suas reações, como se fossem marionetes. Os Separados por exemplo, acreditam que o mundo está dividido entre puros e impuros, justos e injustos, santos e pecadores. Tudo isso, para Jesus, é pura comédia. Não existe olhar franco nem palavra certa. As pessoas têm medo da liberdade, preferem a máscara da mentira à franqueza do discurso desnudo. Por causa de sua rejeição da ‘comédia humana’, a palavra de Jesus é tão franca e inconveniente, indecente até. O ser humano não se suja pelo que lhe entra na boca mas pelo que dela sai (Mt 15, 11). (Os Separados) são cegos que guiam cegos (Mt 15, 14). Onde está guardada sua fortuna, aí está seu coração (Mt 6, 21).

Por isso mesmo, Jesus está convencido que o mundo nunca vai se remir por meio de uma guerra santa entre o Bem e o Mal, mas por meio da conversão interior na cotidianidade da vida, por meio da passagem sempre retomada da mentira para a verdade. Para Jesus não há Senhor da Guerra a comandar os destinos da humanidade. Ele acredita no ‘Deus das pequenas coisas’. É importante perceber que Jesus não aceita uma visão do mundo baseada na luta entre o bem e o mal. (O Pai) faz com que o sol se levante sobre bons e maus. Ele faz chover tanto sobre os justos como sobre os que zombam da justiça (Mt 5, 45). O Pai fica aborrecido com os ‘acertos de contas’ que os homens costumam fazer. Todos somos igualmente humanos, praticamos o bem e o mal. A solução não consiste num acerto de contas mas na conversão: Não resista ao mal (v. 39), só assim você será sal da terra, luz do mundo (v. 13). Com uma extraordinária lucidez, Jesus percebe que, afinal, Deus não é conhecido. A imensa maioria das pessoas o imaginam como um rei persa, sentado no trono abanado por celestes lacaios, em opulência e com plenos poderes sobre vida e morte. O Deus de mentira habita mentes e corações. Meio desesperado, Jesus ensina aos discípulos como rezar:

Pai nosso que está nos céus

Você é santo

Faça com que todos o conheçam.

Que segundo sua vontade tudo se realize

tanto na terra como no céu (Mt 6, 9-10).

É preciso que Deus-pai seja conhecido. É um engano pensar que o evangelho mantém a imagem de Deus que as pessoas carregam dentro de si. Jesus sabe disso e por conseguinte pede insistentemente que se reze o Pai nosso, uma oração nova, desconhecida na Torá, e onde Deus aparece na sua verdadeira identidade.

 


 

Em Busca dos Movimentos de Jesus XIII

 

A Luta Contra a Mentira - IV

 

Novembro/Dezembro-03

 


 

A luta de Jesus contra a religião ritual é uma constante nos evangelhos. No capítulo 21 do evangelho de Mateus, Ele diz que o que sai da boca do homem enjoa a Deus, pois é sujo (v. 11). Sujas são as palavras pronunciadas no templo, que devia ser uma casa de oração mas na realidade é um covil de ladrões (Mt 21, 13). Mentirosos são os Separados (fariseus), cegos que guiam cegos (Mt 15, 14). Jesus fica enjoado com os sacerdotes, que vivem enganando o povo ao recomendar ritos que supostamente agradam a Deus e fundamentam seu sustento e sua invejável posição política, social e econômica na administração dos ritos.

 

São comediantes que rezam em pé, nas assembléias e nas praças públicas, seguros de serem vistos (Mt 6, 5). Vale reler esses textos fortes hoje, dois mil anos após Jesus, pois a religião ritual é hoje mais forte do que nunca e com a TV alcança uma audiência nunca dantes atingida. Jesus não larga as armas e parte em ofensiva, na luta por Deus e pela compreensão social do evangelho: "Não vim trazer a paz mas o punhal. Vim dividir filho e pai, filha e mãe, nora e sogra" (Mt 10, 34-35). "Quem ama pai ou mãe mais que a mim não é digno de mim" (v. 37).

 

"Quem quer salvar a vida a perderá e quem perder a vida por minha causa a encontrará" (v. 39). Muitos se sentem inseguros diante de palavras tão duras, mas alegria daquele que não faço tremer (Mt 11, 6). Eles percebem as razões da alegria de Jesus: Os cegos vêem, Os coxos andam,etc (Mt 11, 5).

 

Aos olhos de Jesus, é isso que importa, e não o incenso, a cerimônia, o culto divino, as palavras vazias e repetidas de tantas celebrações religiosas. Por isso Ele não deixa de castigar escribas e separados, ou seja, a elite letrada que não se importa com a dor do povo. É o único grupo humano que Ele condena. Para Ele, esses letrados são falsos, não mostram sua cara, são mentirosos. As palavras mais duras de Jesus são dirigidas contra eles: "Os coletores de impostos e mulheres públicas entrarão antes de vocês no reino de Deus (Mt 21, 31). Eles simplesmente não entram no reino: Vocês fecham o reino dos céus ao gênero humano. "Vocês não entram nem deixam os outros entrar" (Mt 23, 13-14). Aí vem o terrível capítulo 23 do evangelho de Mateus, que cai que nem uma bomba sobre a cabeça dos mentirosos. Jesus afirma que escribas e separados andam pelo mundo semeando o terror psicológico, só sabem amedrontar os camponeses e descobrem pecado por todo lado, enquanto eles mesmos não têm pecado, sempre são corretos, merecem os primeiros lugares, as saudações na praça pública, o respeito geral. Gostam de ser chamados ‘rabi’ ou ‘mestre’. Mas impedem que as pessoas se aproximem de Deus.

 

Mas eles têm um câncer que os devora por dentro: O exterior tem bela aparência. Por dentro só podridão (v. 27). O caminho de Jesus é diametralmente oposto: "Não permitam que os chamem de ‘rabi’. Vocês só têm um mestre, e são todos irmãos" (v. 8). Nada de mentira na presença de Jesus.

 


 

Em Busca dos Movimentos de Jesus - XIV

 

Paulo e a Escola Paulina - I

 

Janeiro/Fevereiro - 2004

 


 

O primeiro bloco literário de certo peso na história do cristianismo é constituído pela literatura paulina. O Novo Testamento registra 14 cartas de Paulo, das quais só quatro passam pelo crivo de critérios científicos rigorosos. Efetivamente, só quatro cartas são com certeza escritas ou ditadas por ele: a carta aos romanos, a primeira aos coríntios, a carta aos gálatas e a primeira aos tessalonicenses. Mas isso não significa que as demais cartas sejam falsificações. Na época em que foram escritas não era estranho alguém escrever sob nome de algum autor renomado, para que seu escrito alcançasse maior repercussão. Paulo era desde muito cedo admirado e criou-se em torno dele um importante movimento literário que se inspirou nas idéias do apóstolo. Isso faz com que hoje em dia se fale de uma ‘escola paulina’, um modo paulino de se viver o movimento de Jesus e falar acerca dele. Paulo é uma das referências principais, se não a principal, para os que querem entender melhor a novidade trazida por Jesus. Por isso mesmo sempre houve, na história do cristianismo, quem preferisse a maneira peculiar em que Paulo entendeu e expressou o evangelho de Jesus. Como Marcião no século II dC, Agostinho no século V e Lutero no século XVI, só para dar alguns exemplos. Paulo permanece uma referência básica do cristianismo, sua maneira de viver e de falar constitui um dos ‘movimentos de Jesus’.

 

Não é por menos. Paulo é excepcional, não só em termos de cristianismo, mas de humanidade em geral. Suas cartas são ‘patrimônio da humanidade’, pois constituem a primeira literatura que explicitamente considera a humanidade toda. Nem judeu nem grego, nem homem nem mulher, nem senhor nem escravo (Gl 3, 28). Paulo é o primeiro a expressar como é a globalização digna do nome. Se a ONU fosse menos atrelada à política neo-liberal, ela não demoraria em perceber que ele é seu verdadeiro patrono. Pois Paulo cabe antes na ONU do que nas igrejas, o que ele escreveu dois mil anos atrás na sua prosa lapidar e intemporal, ainda hoje é leitura obrigatória para políticos ciosos de preparar o caminho para uma globalização que dignifique o ser humano.

 

Nas edições do Novo Testamento, as Cartas de Paulo vêm depois dos Evangelhos e dos Atos dos Apóstolos, o que acaba criando uma falsa perspectiva. Parece que Paulo está falando de um Jesus que já conhecemos pela leitura dos evangelhos. Na realidade ele vem na frente, nos anos 50 dC, enquanto os quatro Evangelhos aparecem pelo menos vinte e cinco ou trinta anos depois. Não se pode esquecer tampouco que um lapso de setenta anos separa as cartas paulinas dos Atos dos Apóstolos, redigidos por Lucas, que são dos anos 120 dC e que pintam um retrato um tanto romanceado do grande apóstolo.

 

Eis um primeiro papo, no próximo número volto.

Eduardo Hoornaert
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Nasceu na Bélgica, mas é brasileiro por opção. Vive há 42 anos no Brasil e é membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Publicou mais de vinte livros sobre o cristianismo no Brasil e na América Latina. Seus escritos estão voltados para a vida do povo e dos movimentos populares.

Juntamente com Benedito Prezia escreveu Esta terra tinha dono, pela Editora FTD. Seu último livro, Os anjos de Canudos, saiu pela Editora Vozes.